Até a meia-noite, pt. 6, por Renato Jardim

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— Não querem uma bala? — pergunto por fim.

As sombras param de se mover.

— Tenho três. Não vou comer todas.

Como se fossem bolhas de sabão que estouram, as sombras a minha frente se derretem ao chão e se juntam como uma coisa só, formando um gato enorme, preto, com os olhos em chamas em seguida. Ele tem cheiro de enxofre e seus dentes saem para fora de sua boca em forma de espinhos. A criatura me olha com curiosidade.

Estendo a mão com as balas. Preciso que se aproxime mais de mim.

— São caseiras e cheias de açúcar. — Eu faço força para sorrir.

As chamas de seus olhos lançam faíscas ao ar e ele dá um passo em minha direção. Prendo a respiração em uma tentativa desesperada de me tranquilizar e não deixar que o medo tome conta de mim.

— Pode ficar com as três, se quiser. — Continuo sorrindo para o gato demoníaco.

Ele aproxima a cabeça da minha mão e sinto o calor aquecer minha pele. A criatura abre os lábios e abocanha as balas de uma vez, fazendo com que uma labareda enorme suba de seus olhos. Eu me assusto e acho que ele sente o meu medo, pois seu olhar cai sobre mim como se me desvendasse. O vejo começar a se dissipar em sombras novamente, então me inclino para frente o mais rápido que posso e enfio o punhal sem seu peito. Um grito quase humano sai de sua garganta e o fogo de seus olhos se apaga no mesmo instante. Como um brinquedo sem pilha, seu corpo amolece e cai no chão.

Minha respiração volta a acelerar, mas dessa vez é de felicidade. Consegui! Derrotei um alma de gato! Guardo o punhal no bolso e pego o seu corpo do chão sem dificuldade, mas percebo que meus braços estão trêmulos. Vejo a lua brilhar no céu escuro e começo a correr o mais rápido que posso em direção à floresta.

As folhas do alma de gato

Quando chego com o corpo do alma de gato nos braços, vejo a expressão do duende mudar, como se estivesse olhando para um pote cheio de ouro. Minha vó parece surpresa e orgulhosa ao mesmo tempo.

— Primeiro desfaça o feitiço! — digo.

Após uma reverência, o duende estala os dedos. A estátua de Isis estremece e em seguida pequenos cacos de rocha começam a se desprender dela. Aos poucos, ela vai voltando à sua coloração normal. Seus cabelos despencam do ar e caem sobre sua cintura e ela abaixa os braços que estavam estendidos em defesa.

— Maria Alice? — Ela me olha com espanto e depois se vira para o Dué. — Você!

O duende dá um passo à frente.

— Agora me entregue o corpo.

Minha avó me puxa pelo braço e aproxima a boca do meu ouvido.

— Ele comeu?

— Sim.

Ela se afasta de mim.

— Entregue o corpo, querida. Cumpriremos nossa parte do acordo.

Caminho até ele e estico os braços para que pegue o corpo do gato. Ele o pega com uma mão só e o coloca no chão. Depois, faz um movimento lento com as mãos e a terra do chão parece criar vida enquanto me afasto. Segundos depois há um buraco ali. Ele chuta o corpo do gato para o buraco e faz outro movimento com as mãos, devolvendo a terra para o lugar que estava antes e enterrando a criatura.

Dali, instantaneamente, um galho brilhante surge e dele pequenas folhas desabrocham produzindo um som agudo. Juro por Deus, elas parecem ter o mesmo formato das chamas que saíam dos olhos do gato há minutos atrás. Dué passa a mão pelo galho e as arranca na hora. Como se não comesse há séculos, as joga na boca e as mastiga desesperadamente. Seu corpo lentamente começa a desaparecer.

— Foi um prazer fazer negócios com vocês, Aruanas.

Ele desaparece completamente.

— Não! — grita Isis.

Ela começa a correr na direção do Dué, mas minha vó a segura pelo braço.

— Deixe que ele vá. — Ela aponta a lamparina na direção da trilha. — Vamos para casa.

Quando chegamos à varanda de casa, fico olhando para Isis como se fosse a primeira vez que a vejo. De certa forma é, porque só agora a vejo como ela realmente é. Como não percebi antes? Não é difícil de ver que não é humana. O simples gesto de respirar dela é diferente de todos os outros.

— O deixamos escapar. Agora que pode ficar invisível de novo, fará coisas ainda piores. — Vejo que os olhos de Isis se enchem de lágrimas quando fala.

Minha vó se aproxima do parapeito da varanda.

— Olhem para as estrelas. — Ela aponta para o céu e depois junta as mãos na frente do peito como quem faz uma oração. — Por favor, Jaci, minha mãe, mostre onde está.

Um fio brilhante parte de uma estrela e começa a se ligar a outras até chegar à lua cheia. A lua emite um brilho intenso e de repente um facho de luz se estende para baixo.

— Vê, filha? A luz mostra onde o Dué está.

— Como isso é possível? — Eu estou em choque.

— Eu não vejo nada. — Isis até se apoia no parapeito e estreita os olhos.

— Provavelmente só quem tem o meu sangue pode ver. — Vovó se vira para mim. — Quando destruí a capa do Dué há muitos anos, Jaci, a deusa da lua, me presenteou com aquelas três balinhas. Eu nunca entendi o motivo, mas acho que ela previu o que aconteceu hoje. Quando vi que o que o Dué queria era um alma de gato, tudo fez sentido. Mesmo invisível, agora eu posso localizá-lo toda noite. Quando eu não for mais viva, você poderá fazer o mesmo, filha. Se ele aprontar, vai atrás dele e acaba com a raça daquele demônio imundo!

Eu abraço a vovó.

Vai ficar tudo bemWhere stories live. Discover now