Ritual da Lua Sangrenta- Parte 2

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Tinha a sensação angustiante de que cada cicatriz de meu corpo tinha aumentado de tamanho, ficando visíveis até para a mulher cega.

Levantei a cabeça com cautela, mas me senti tola, elas não olhavam para meu corpo, nem para meu rosto, focavam em meus olhos e ao mesmo tempo não pareciam olhar para eles, me encaravam como se conseguissem ver a loba destinada a mim e não eu.

Ficamos no centro da torre, no lugar onde a lua iluminava com mais força. Quando vi Jena em apenas um piscar de olhos mudar para loba não senti medo, não tive tempo de sentir, a fascinação me tomou completamente.

A linda loba de pelo castanho mantinha os olhos esmeralda focados nos meus me deixando insegura sobre o que fazer, então para amenizar a tensão procurei Celeste com olhar, mas ela não estava mais ali.

Completamente só para continuar e ainda mais nervosa fiquei parada lutando para conter o tremor no corpo, desesperada para que tudo acabasse logo.

— Sua primeira mordida foi uma apresentação. — Meu coração disparou com a voz macia, estava começando e mesmo que eu quisesse agora não podia mais voltar atrás.

— Com isso a loba consegue se aproximar e conhecer a parte humana que logo se fundirá a ela se tornando assim um único espírito com duas formas, o humano e o divino.

Divino... Se papai estivesse aqui teria rido até perder o fôlego então mandaria prender tanto a mim quanto a senhora somente pela audácia de falar que uma mulher teria algo de divino dentro dela.

— Na segunda mordida é a preparação. Onde a mente se abre, permitindo que a loba doutrine a ligação, transmita sabedoria e incuta no corpo a apuração dos sentidos.

Sabedoria... Ele soltaria um esgar de deboche e mandaria açoitar nós todas por desafiar um dos códigos de conduta Humanis mais conhecido. Mulher foi feita para servir.

Mas mesmo que papai se pendurasse nos meus pensamentos como uma doença, essas poucas palavras ditas por uma senhora frágil esmigalhavam a base do ensinamento criado por um rei poderoso e tirano, me incitando a mais uma vez refletir sobre o quanto eu estava apegada aos costumes do reino Humanis e aos ensinamentos de papai.

Mas aqui... nada disso existia, tudo era diferente.

E descobrir que a liberdade das mulheres em outros povos era algo antigo e aceito como normal me enchia de raiva, pois a opressão fez parte de minha vida e até então eu não sabia que podia ser mais do que um corpo para usar.

Sabedoria, divino, força... eu, uma mulher, podia ter tudo isso, mas antes eu precisava me libertar do eco de passado que ainda insistia em aguilhoar meus passos.

Sem ter ideia das coisas que passavam pela minha cabeça a mulher continuou com sua voz cantante.

— A terceira mordida é a concretização, nessa a loba se funde ao espírito recebendo morada permanente no corpo podendo assim vir quando necessário e se recolher quando for pedido. Mas como será tudo hoje usaremos ervas para auxiliar na passagem das etapas.

Eu sentia algo, mas não medo, algo como uma iluminação, uma constatação da profundidade da ligação dos Licans com a natureza, com o lado espiritual da raça e isso fazia minha pele eriçar.

Distraída com as sensações que tomavam meu corpo dei um pulo quando o som ecoou pelas paredes da torre, escondi o susto ao ver que era a senhora idosa que uivava.

Em resposta um coro de uivos se seguiu, alguns muito além de onde estávamos, vinha do coração da floresta, um som contínuo que fazia arrepiar a pele.

A idosa recebeu uma terrina fumegante e logo começou a falar, concentrada em levantar a vasilha para capturar um facho de luz.

— O sangue da lua faz a fusão da magia do lobo com a da terra. Quando o sangue tocar o solo e a magia da lua entrar no corpo através dos dentes de um lupino o futuro pertencerá a lua e o passado ficará para trás.

Tratado dos Párias - Supremo Alfa.Where stories live. Discover now