Capítulo 43 - Kabus, o senhor dos pesadelos

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11 dias antes do Juízo Final

"A antiga lenda diz que em um universo separado dos demais deuses da mente, num castelo de duas faces, um resplandecente que ficava acima da superfície e outro opaco espelhando o primeiro abaixo da terra, viviam duas entidades, gêmeos em aparência, mas não em personalidade.

Nesta época, os seres terrestres não sabiam o que era sonhar, pois, apenas a estas duas figuras era restrito tal conhecimento e maleabilidade, um dom proibido e excluso de qualquer outro.

O primeiro denominado Mafarki controlava os sonhos, um plano independente do mundo dos humanos e dos deuses da mente, um lugar de formas moldáveis e pensamentos sólidos, tudo era belo na metade superior do reino das ilusões, a começar pela melodia encantadora da harpa dourada de Mafarki, seus longos cabelos louros se entrelaçavam em fios maiores, como se tivessem vida, juntando-se a suas mãos gentis, doces, macias e esbranquiçadas como a neve, entoando o som de inúmeras sinfonias. De todo o cosmo mental podia-se escutar a harmonia inconfundível dos sonhos, soando como o cantar de milhões de seres celestiais.

Suas vestes brancas brilhavam mais do que as estrelas do céu noturno, usava na cabeça um ornamento semelhante a um arco de diamantes, centralizado havia uma singular pedra do sonhar, de forma retangular e cor indescritível, olhá-la era o equivalente a observar o coração do universo. Através dela tudo se materializava naquele reino, a música tocada pela entidade dos sonhos tinha forma, suas ondas se dissipavam até encontrar a preciosa pedra, que realizava toda a magia, transformando notas em lugares, paisagens e criaturas.

Até mesmo a comunicação em ilusões se realizava através do som, tudo era dito pelas cordas de pó de cristal de Mafarki, reluzentes tanto quanto sua própria face. Escutando seu soneto reconhecia-se o espírito sereno, calmo e manso da entidade utópica, que com paciência e tranquilidade criava tudo que havia em seu reino.

Do lado oposto, escuro como as sombras e totalmente sem vida, vivia isolado o irmão gêmeo dos sonhos, Kabus, o senhor dos pesadelos. E seriam gêmeos idênticos se não fosse pelo tom obscuro que este se assemelhava, seus cabelos negros e vestes ainda mais enegrecidas, faziam com que qualquer luz fosse apagada em sua presença, sua expressão não emitia um único brilho.

As madeixas semelhantes ao seu irmão, também se moviam, mas com muito menos maestria e beleza, às vezes, pareciam até discordar entre si, mostrando uma enorme falta de harmonia, ao invés de aparentarem sedosas mãos feitas de fio, o movimento lembrava tentáculos desajeitados. Em sua cabeça, alojava a pedra redonda e negra dos pesadelos, semelhante a uma pérola. Portava uma flauta longa, sua extensão passava um palmo de sua estatura total, comprida, era manuseada com o apoio dos cabelos, que faziam o papel de suporte e também do toque dos dedos nas extremidades onde suas mãos não alcançavam. Sua melodia era fúnebre e melancólica, o som parecia se arrastar pelo seu castelo solitário, fazendo companhia ao único amigo, a própria sombra.

Nada se criava através de sua canção, a parte inferior do reino de ilusões era inabitada, se escutava apenas o respirar profundo e pesado dos lamentos de Kabus através das espessas paredes de seu lar. Por eras ele desejou que fosse amado por todos como seu irmão, adorado pelas maravilhas que provinha da sua sinfonia, reconhecido como o grande maquinador das coisas, criador de formas e seres, mas este dia parecia cada vez mais distante.

Quis ir até Mafarki para expressar seus sentimentos em relação a existência que julgava desgraçada, porém, seus castelos, apesar de parecerem tão próximos, eram ao mesmo tempo opostos impossíveis de se comunicar, desde a criação coexistiram cada qual em seu lado do mundo de ilusões, tudo que sabia sobre o irmão era derivado de sua canção que tocava o pensamento taciturno do senhor dos pesadelos, materializando em sua consciência a beleza dos jardins e a natureza colorida, rodeada de criaturas saltitantes e diferentes espécies.

A sinfonia do juízo finalOnde as histórias ganham vida. Descobre agora