Capítulo 11 - Lágrimas de sangue

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180 dias antes do Juízo Final

Até hoje não sei como consegui me manter respirando após o suicídio de Zelda, meu maior desejo era ter ido no lugar dela. De início, culpei o desgraçado que ocasionou todo este tormento, trazendo a sinfonia, e transformando a mente das pessoas que amamos em seu parque de diversões. Os que não foram afetados diretamente, com certeza se tornaram escravos do frenesi que sucedeu nos dias seguintes.

Mas depois de incontáveis noites trancado em casa, preenchido de ópio e álcool, demorando para dizer o que tanto me atormentava, a verdade por trás da morte dela tinha que ser dita.
Eu fui o culpado... Eu matei Zelda... Como um pai não percebe a depressão da própria filha...

— Eu não mereço seu perdão princesa... Por favor, Deus, Lúcifer ou quem mais puder escutar, leve-me no lugar dela...

É insuportável viver sem ela ao meu lado, eu desistiria da eternidade para sentir seu aroma, isento da vergonha de saber que pode estar me observando de cima, o mais belo anjo do paraíso, arruinada pela imagem desfigurada de um ser que já não possui alma. Não quero que o mundo mire em meus olhos e veja no reflexo da íris este monstro. Essa vida frágil se rompeu para sempre no dia que você se foi.

Levei mais de um trimestre para aceitar a responsabilidade, claro que não fui capaz de abrir a garrafa com a mensagem deixada por ela, doía demais, uma dor insuportável, que me corrompia só de pensar em suas palavras escritas, escancarando o quão inútil eu fui ao deixá-la chegar a este ponto. Meus olhos ardiam enquanto pensava em seu andar, jeito e rosto. Tudo que tocava me remetia a sua presença, o quarto permaneceu intacto, não tive coragem nem mesmo de mover um único objeto do lugar, até mesmo adentrá-lo era inconcebível. Tinha a impressão de reviver aquela cena todas as vezes que abrisse a porta.

A veria lá, estirada no chão, fria e imóvel.

Zelda está morta.

O tempo foi-se passando, e meu humor se arrastava e ia metamorfoseando-se, como se estivesse evoluindo, saindo de um estágio quadrupede para um bípede, às vezes, até desenvolvendo-se a ponto de construir uma personalidade própria e independente. A fase de imensa tristeza fúnebre abriu espaço para um ódio cego e irracional, nesta transição chorava lágrimas de sangue escaldante, que queimavam a minha pele e a tudo que as gotas tocavam.
Não demorou para estes ingredientes de sentimentos serem jogados num caldeirão e misturados, dando vida a uma nova etapa de angústia mórbida, taciturna e negra. Menos agressiva e mais incapacitada, dependente de acessórios para se manter em pé. Foram momentos tão obscuros, que não conseguia enxergar minha própria sombra. Olhava para o breu cuspindo em meu cadáver, impossibilitado de morrer ou viver.

A passos lentos, com os órgãos vitais do corpo praticamente disfuncionais, a carcaça de um pai que um dia se chamou Aaron Tyler se arrastou para algum lugar, tentando fugir do poço fundo que refletia apenas um pêndulo com uma proeminente lâmina que oscilava de um lado para o outro, buscando rasgar minha carne ao meio.

Quanto mais caminhava e vagava no horizonte da mente, mais perdido eu ficava. As trilhas mostravam que todas as direções levavam ao mesmo mar enlameado e grudento da morte.
A estrela inapagável que me resgatou no último círculo do inferno, brilhando como um farol imponente, capaz de ofuscar até mesmo o sol. Foi Sophy.

Escutei sua voz em meio ao lodo e as brasas que eram cravadas no coração. A pureza cintilante e doce do seu timbre, e o calor confortante do toque dos pequeninos dedos sugavam as trevas como a luz consome a escuridão.

E mais uma vez, me ergui, ascendendo como um exilado retornando a pátria, que depois de muito vagar e passar por incontáveis terras estrangeiras, encontrou o caminho de casa, marcado pelo estigma da marcha fúnebre, porém, ainda vivo. Tendo transformado durante a jornada a vingança em justiça, e a raiva em combustível para mover-se.

Tinha seis meses para evitar falhar pela segunda vez, minha menininha não poderia respirar num mundo contaminado pelo óbito. Também haviam outras pessoas que dependiam de alguma ação, uma esperança no mínimo.

— Sophy... — Sussurrava seu nome ao vento, como um elixir que revigorava minha mente e esvaia a lástima.

Aceitarei minha penitência e sina com satisfação após abrir as portas do céu para que se junte aos demais anjos. Porém, antes disto acontecer, quero levá-la nas costas por uma escadaria de ouro branco que conecta o mundo terreno a eternidade, subindo-a até seus anos de maior idade. Quando seu velho pai não aguentar mais se sustentar pelas pernas e você tenha vivido o suficiente para se juntar a sua irmã.

Minhas duas princesas.

Zelda e Sophy.

Prometo a vocês.

Eu pararei a sinfonia do juízo final.

A sinfonia do juízo finalOnde as histórias ganham vida. Descobre agora