Capítulo 14 - Tudo começou com o medo

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170 dias antes do Juízo Final

Acompanhei o rei dos esgotos por algumas áreas da cidade, apenas quieto, observando sua movimentação que parecia tão natural e imperceptível aos cidadãos, tornando praticamente impossível alguém suspeitar da sua organização.

Todos os moradores da cidade o conheciam e agiam como agentes dele, transformando suas vidas simplistas e ocultas do senso comum em máquinas de coletar e repassar informações.

— Por que faz isto? — Perguntei, curioso em entender um pouco mais sobre aquele negócio.
Ele andava a passos lentos e curtos. Eu tinha que diminuir e muito minha passada geralmente rápida para acompanhá-lo, colocando-me ao seu lado.

— Tédio — Respondeu, sem desviar o olhar do grupo de mendigos que estava vigiando — Já notou como as pessoas desta classe social, abaixo da miséria, parecem invisíveis à sociedade? A diferença é que eles agora entendem um pouco melhor sobre as crises humanas, são blindados da necessidade moralista e capitalista de ser alguém, ou de ir para algum lugar depois daqui. Você consegue enxergar a coragem que eles dispõem eliminando sua personalidade para viver como indigentes? Nem todos estão aqui por não terem opções sabia? Se surpreenderia com as histórias de cada um deles, perca um tempo qualquer dia destes conversando e ouvindo o seu passado.

Continuei andando sem expressar palavras, sabia que a reflexão dele não havia terminado ainda.

— Aproveito meu tempo de vida desta maneira, escavando da mente destas pessoas a angústia e a vergonha de serem quem são, e da busca inacabável pela aceitação. Quando percebi que isso os fazia bem, os libertava, continuei, até que ao olhar para trás, uma massa de operários das ruas estava a me seguir, clamando para prosseguir com esta purificação da alma, que funcionava melhor que álcool ou drogas. O conhecimento os salvou, e hoje somos uma imensa companhia que atua nos lugares que ninguém percebe, indo desde as conversas triviais ao telefone até aos assassinatos brutais nos becos.

— E que tipo de mensagem levam? — Questionei, interrompendo um pouco o raciocínio dele.
— Qualquer uma que não perfure o código dos esgotos. E como sei que sua próxima pergunta será o que é este código, já antecipo que terá que descobrir por conta própria. Você não veio até mim para me acompanhar e ouvir? Então escute o que as ruas te dizem. Nisto, já terá aprendido a primeira das regras.

O rei dos esgotos andava tão vagarosamente que imaginei que tivesse alguma dificuldade nos membros inferiores, ou talvez fizesse parte do papel que interpretava, seu rosto sempre permanecia abaixado, a barba grande e volumosa se juntava ao chapéu posicionado na altura dos olhos, fazendo com que uma sombra oculta-se sempre sua face, poucas vezes pude visualizar o tom de pele encardido.

— Por que me deixou segui-lo?

— Todos seguem alguém, não mudaria muito se o fizesse com ou sem a minha permissão.

— Confesso que achei que nunca iria encontrá-lo.

— E você desistiria? — Perguntou ele.

— Não! — Afirmei, convicto e com o peito estufado — Tenho um combustível potente que me alimenta.

— Me lembro bem desta sensação — Disse, parando e se sentando numa esquina movimentada. Uma que cruzava as duas principais avenidas da cidade. Tirou de dentro do casaco uma caneca de alumínio amassada e colocou em frente a si.

Nela havia uma inscrição feita por uma caneta permanente preta, em letras trêmulas, pequenas e desproporcionais.

"Conheça a alma, e o amor será eterno".

Me comovi um pouco ao ler a frase, eu conhecia a alma da minha princesinha, melhor do que ninguém neste mundo, e isto fez seu amor ser eternizado em meu coração. Ela podia ser verdadeira comigo, e Zelda sabia disto.

Sentei ao lado do homem vagante. Olhando as pernas que passavam apressadas de um lado para o outro, sem nunca nos dirigir os olhares.

— Rua das lamentações — Iniciou o rei, apontando para a avenida que estava a nossa frente — O que sabe sobre esta rua?

— Tirando o fato de que é a principal da cidade, acho que não tenho nada mais a acrescentar — Falei, me sentindo um pouco estúpido.

— Esta foi a primeira rua de todo o distrito, as casas, comércios e áreas públicas se desenvolveram ao redor dela. Os sussurros dos esgotos contam que exatamente aqui onde estamos sentados, havia o centro de uma intersecção de duas ruas, que compunham um pequeno vilarejo, e você se surpreenderia se soubesse a história deste lugar centenas de anos atrás. E ficaria ainda mais afoito se percebe-se a relação dela com o mistério que procura solucionar.

— A sinfonia? — Perguntei, sacudindo o homem involuntariamente num surto.

De forma rápida me recompus, e voltei a perguntar um pouco menos eufórico.

— Em que a principal rua de Riverside e a história desta vila relacionam a sinfonia do juízo final?
— Aqui temos o problema dos jovens. Não se preocupam com a antiguidade, querem respostas rápidas para perguntas longas. É necessário aprender o passado para desvendar o presente Aaron.

Percebi que ele tratava as histórias como um assunto sério, ficou notável a irritação em sua voz ao confrontar minha afobação. Infelizmente o relógio do fim dos tempos ficava fazendo tic tac em minha cabeça, e eu sentia que perdia segundos preciosos a cada momento.

Quando escutei meu nome saindo da boca do rei dos esgotos, percebi que eu mesmo não havia perguntando o dele. Uma grosseria ainda maior quando levava em consideração o trabalho que ele teve se expondo a mim.

— Como posso chamá-lo? — Me senti envergonhado, questionando apenas agora o básico em qualquer relação educada.

— Pode me chamar de Archie.

— Este é seu verdadeiro nome?

— Talvez — Afirmou, parecendo incrédulo a minha pessoa.

— Então Archie, poderia me contar um pouco mais sobre esta rua?

— Posso — Falou, agradecendo algumas moedas que batiam no fundo da caneca e produziam um ruído metálico — Tudo começou com o medo, o mesmo que perpetua agora na figura desta geração. E acredite, o medo é o denominador comum em todos os mistérios de Riverside. 

A sinfonia do juízo finalOnde as histórias ganham vida. Descobre agora