Capítulo 06 - As portas do céu

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365 dias antes do Juízo Final

Cada centímetro que me aproximava, meu coração acelerava mais, como se fosse sair pela boca. Um receio angustiante, do tipo que você teme enfrentar, não quer avançar, mesmo sabendo que será necessário e inevitável.

Estacionei a caminhonete em frente a garagem, as luzes de casa estavam acesas, segurei na mão de Zelda e seguimos rumo a porta da frente. Era alvejado por meus pensamentos a cada novo passo, a noite acima de nossas cabeças carregava uma lua cheia imponente e pesada. Meu mundo agora estava enclausurado, e só existia a imagem da minha família reunida.

Virei a maçaneta e empurrei a porta, que rangendo anunciou a minha chegada, Jivana e Mytru, os labradores, vieram sedentos por atenção, pulando e balançando os rabos de maneira frenética, também latiam, girando em torno de si com aparente felicidade.

Afaguei seus pelos, dando tapas nas coxas para que avançassem e lambessem meu rosto, e foi exatamente o que fizeram. Mytru, o macho de cor escura, estava com sua bolinha na boca, a arremessei e ele partiu em disparada para buscar.

— Chloe? — Chamei, numa voz comum, semelhante como quando voltava do trabalho.
Não tive nenhuma resposta. E aquilo fez meu coração apertar-se. A TV estava ligada, apresentando um canal que falava sobre receitas culinárias.

— Chloe querida? Onde você está? Sophy? Está por onde princesa? O papai chegou.

Enquanto cruzava a sala, repetia seus nomes, seguido de perto por Zelda e os cachorros, a casa tinha um andar acima, onde ficava o quarto das meninas, porém, antes de subir, resolvi verificar se havia alguém na cozinha, que assim como o restante da parte térrea, estava inteira iluminada, a primeira coisa que vi ao atravessar a porta eram duas taças de vinho inacabadas no balcão, quando comecei a contornar o móvel e visualizar o que estava do outro lado. Meu relógio mental havia parado.

O sangue no chão logo deu espaço a uma cena que ficaria para sempre guardada na memória. Minha esposa Chloe tinha o pescoço cortado por uma faca de fatiar carne, usava um espartilho preto e orelhas de coelho. Ao seu lado, um homem de meia idade, moreno e malhado, apenas de cueca também abrira um corte horizontal em sua garganta.

Alguns objetos estavam espalhados no chão, e manchas de sangue marcavam os armários e eletrodomésticos, em seu olhar, ainda pude enxergar horror. Estavam abertos, arregalados e atentos observando o vazio da casa.

Zelda, de imediato apavorada, levou as mãos ao rosto e começou a chorar, eu não sabia como reagir, estava sem falas, sem pensamento. Perder a mulher da minha vida era igualmente trágico a descobrir sua traição, ainda mais de tal maneira. Uma névoa negra cobriu minha visão e não conseguia enxergar um palmo a minha frente naquelas circunstâncias.

— Por que Chloe? Por que tinha que ser você?

Abracei Zelda, tentando confortá-la, ao mesmo tempo que buscava meu próprio alicerce, aquilo doía muito, uma dor imensurável, eu a amava, e chorava por tê-la perdido, e lamentava duplamente por ter sido apunhalado pelas costas. Não bastava ser assassinado, tinha que ser por você Brutus. As trintas moedas de ouro não significariam nada se a traição não fosse por você Judas, meu discípulo.

Enquanto lágrimas percorriam meu rosto como rios desaguando, ouvi uma voz que trouxe alivio a minha alma, um anjo que longinquamente iluminou o caminho, criando uma estrada no ar que me tiraria do inferno e levaria ao paraíso.

— Papai? — Sophy estava com sangue em seu pijama, não dela, mas de outra pessoa, possivelmente ao tentar acordar a mãe falecida.

Meu bebê de quatro anos agora parecia a muralha que separava o desgosto e infelicidade da redenção, um bloqueio do mal que sussurrava dizeres espinhentos em meus ouvidos.

Corri com um alivio no coração e uma felicidade no rosto como jamais fiz em minha vida, a ergui pelos braços e rodopiei no ar com ela. Lágrimas frias e melancólicas deram lugar a aquecidas alegrias. Abraçando-a com tanta força que me julguei incapaz de soltá-la por diversos dias.
Quando recebi pelas costas o abraço de Zelda, e do outro lado senti as mãozinhas quentinhas de Sophy, tive a certeza de que nem a maior desgraça poderia roubar minha vontade de continuar seguindo em frente, eu levaria o mundo nas costas para fazer minhas princesas felizes.

E em meio à comoção do momento, desabei por um instante, sabendo que devia superar o luto, a lástima e principalmente a morte para permitir que a vida delas pudesse florescer até crescer e tocar as portas do céu.

A sinfonia do juízo finalOnde as histórias ganham vida. Descobre agora