Capítulo 01 - Palavras proféticas

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365 dias antes do Juízo Final 

O anfiteatro da universidade de Riverside era o melhor lugar para lecionar, comportava aproximadamente umas duzentas pessoas e tinha uma das melhores estruturas para apresentação da cidade. Eu dava algumas disciplinas do curso de letras nele, mas essa era a primeira oportunidade que tinha para ministrar uma palestra de literatura para um público tão grande, o clube do livro da cidade se limitava a não mais de quinze pessoas, não era muito popular como outras oficinas.

Estava feliz em enxergar metade da lotação do espaço preenchida por jovens entre dezoito e vinte e cinco anos, animados para escutarem ao longo de mais de uma hora um estudo sobre a primeira parte da obra fundamental de Dante Alighieri.

Entusiasmado em especial por ter conseguido trazer comigo minha filha mais velha Zelda, moças de quinze anos são difíceis de lidar, e com ela não podia ser diferente, estava vivendo a fase rebelde de sua vida, maquiagem preta pesada e roupas igualmente escuras, o relacionamento com a mãe não era dos melhores, discutiam por qualquer motivo tolo, porém, eu com muito jeito fui conquistando minha princesa das trevas, que esconde a ternura e amor atrás de uma carapaça de revolta.

Entrei na sala e a vi sentada no último banco, isolada e com os braços cruzados, usando fones de ouvido e uma expressão de poucos amigos, às vezes, isso facilitava na hora de afastar alguns pretendentes.

Gargalhei mentalmente com meu próprio comentário, acho que todos os pais no fundo tem essa dificuldade de deixar seus filhos conhecerem o mundo, tentamos blindá-los do mal que sabemos que existe lá fora, porém, uma hora ou outra, eles irão vivenciar por conta própria essas experiências, sejam boas ou ruins, resta a nós confiar na criação que a eles fornecemos e em suas escolhas.

Coloquei minhas anotações sobre o púlpito e me dirigi ao centro da sala, olhando para cima, observando os rapazes e moças curiosos que conversavam como um enxame de abelhas zunindo. Hoje com trinta e cinco anos, me sentia velho perante aquele público, mas igualmente satisfeito, eram o tipo de pessoas que mais gostava de ensinar. Intensos e imersos num mar de dúvidas, são ferramentas poderosas quando bem lapidadas.

Bati duas vezes no microfone, que ecoou em todo o auditório, fazendo com que o ambiente se silenciasse quase que de imediato.

— Boa noite jovens! Antes de mais nada gostaria de agradecer a presença de todos, fico extremamente contente em ver tantas pessoas inscritas para a oficina de literatura deste ano. Eu sou o professor Aaron Tyler e estarei com vocês nestas quase vinte palestras que compõem a grade.

Tentei ajustar a gravata que estava me sufocando um pouco, Chloe insistiu que eu usasse terno neste primeiro dia, disse que combinava com os óculos quadrados de armação preta que tenho. Os cabelos que geralmente ficavam desarrumados estavam penteados para trás. Porém, quando olhei para a plateia, percebi que havia cometido um erro.

— Por que a literatura é importante? — Continuei — Pelo fato de conseguir preservar o conhecimento da humanidade? Por prover ensinamentos e experiências? Talvez para nos apresentar novas versões de mundos? Um refúgio para a alma? Diria que todas essas coisas juntas, entretanto, o primordial é o fato delas fornecerem histórias, textos estes que remetem a nossas vidas, não existem livros que tenham um propósito diferente, todos contam histórias.

Comecei a retirar a gravata no meio da aula, também deixei o terno sobre a cadeira junto com os óculos, colocando a camisa para fora e bagunçando o cabelo.

— Reparem nisto, sou casado com uma mulher que amo, tenho duas filhas lindas e um casal de labradores. Hoje mais cedo antes de vir para a universidade, conversei com minha esposa sobre meu figurino, ela acreditava que uma vestimenta formal passaria maior credibilidade aos ouvintes, claro que isto na perspetiva dela, que também me achava mais atraente de terno e gravata.

Alguns alunos deram risada.

— Pensando nisto, e também interessado em agradecer a dedicação que ela teve em ir até uma loja especializada e pedir que fizessem este look que estão enxergando, resolvi por vir vestido igual a um agente funerário. E isto me fez feliz até o momento que pude finalmente me livrar deste aglomerado de tecidos, me sentindo ainda mais aliviado.

Expressões atenciosas e um ar de descontração começou a perpetuar sobre toda a turma, que pareciam relaxar da apreensão dos primeiros minutos numa classe cheia de pessoas novas.

— Mas, vocês devem estar se perguntando, o que isso tem a ver com literatura? E a resposta é simples. Histórias! Literatura nada mais é do que colocar no papel histórias das nossas vidas e experiências, sejam elas de intuito acadêmico, pessoal, fantasioso, em versos ou prosa, sobre política ou cavalos alados. Sendo assim, os primeiros dez minutos deste bate-papo que teremos será para conversarem com o colega, contarem suas histórias e entenderem que não existe literatura se não houver vidas.

Alguns rostos familiares, conhecidos de anos anteriores estavam presentes naquela classe, como os amigos inseparáveis Stanley e Elijah, o primeiro desta vez convenceu sua namorada Leah a participar do grupo.

Tudo estava caminhando naturalmente, apesar do mal tempo lá fora, um dia cinzento com menos de dez graus, dava para escutar o assovio do vento, que cantava uma sinfonia gelada e melancólica.

Elijah pediu licença acenando com a cabeça e se dirigiu a saída, poucos minutos depois um alvoroço tomou conta de todos os estudantes, como numa alienação global, todos estavam com seus celulares em mãos, espantados e bloqueados a qualquer palavra que eu dissesse. Foi então que peguei meu próprio telefone e pude entender o que havia prendido a atenção da turma.

Uma espécie de maníaco vilão de quadrinhos, usando uma máscara em forma de crânio humano que escondia toda sua cabeça estava realizando uma transmissão ao vivo, proferindo palavras proféticas apocalípticas que interrompeu quase todo o mundo.

Após o fim do vídeo, haviam pessoas ofegantes, assustadas, algumas com falta de ar e outras um tanto quanto céticas, olhei para Zelda no último assento, ela parecia com a mesma aparência de neutralidade de sempre.

Porém, quando o primeiro aluno começou a gritar de forma frenética e pavorosa eu já pressentia que não terminaria bem. 

A sinfonia do juízo finalOnde as histórias ganham vida. Descobre agora