Dois.

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Mostrei a ele onde era sua mesa de trabalho, que por sinal era de costas para a minha. Não iria precisar ficar olhando para ele, mesmo que lá no fundo eu quisesse.

Eu tinha muito trabalho para fazer nesse dia. Estava quase sobrecarregado. Tinha que escrever uma nota sobre o falecimento de Luiz Feitosa, o médico que havia sido assassinado misteriosamente na terça-feira. Poderia pedir para que Pedro buscasse algumas fotos sobre o caso, mas preferi evitar ele durante todo resto do dia. E da semana também.

Meu plano de fugir dele pelo resto da semana deu certo. Eu chegava primeiro do que ele, e saia depois dele. Com o intuito de não precisar falar ao chegar e ao sair. Eu sempre fui ótimo em fazer isso, sempre fiz, e sempre farei.

Na semana em que eu o evitei, era como se ele nem ligasse para o fato. Ele não olhava para mim, e quase nunca dirigia uma palavra sequer a mim.

Talvez fosse estranho dois colegas de trabalho quase não se falarem. O que normalmente poderiam construir uma amizade a base de fatos coerentes, começou a ser devastada pela falta de entendimento e entretenimento de ambos.

Era sexta-feira. Dia 23. Estava quente. Absurdamente quente. Acredito que não deveria está tão quente assim. Mas, minha janela preferida conseguia me dá vento necessário. Nesse dia, eu estava um pouco com dor de cabeça. Não havia dormido direito, pois meus vizinhos resolveram fazer uma festa fora de hora.

Não consegui fazer quase nada no trabalho. Deveria ter telefonado para quatro pessoas, para perguntar sobre o curioso caso do E.T no velho armazém. Historia para boi dormir, mas, que poderia render uma coluna inteira.

Nesse dia, enquanto bebia água, olhei sem querer para o Pedro. Ele desviou o olhar, quando o olhei. E fez isso umas outras duas vezes.

Ele devia está me evitando, só pode.

Mas foi a primeira vez que percebi que ele usava óculos. Nunca havia visto ele usando. Ou talvez não tenha percebido, pois o evitei durante a semana toda.

Por volta das cinco e meia da tarde, eu estava finalizando uma reportagem, quando caíram duas fotos em cima da minha mesa, e uma sombra humana atrapalhou meu campo de visão.

- Ah, oi. - Falei.
- O que você vai... fazer... hoje a noite? -

Perguntou Pedro.

- Acho que vou ficar até mais tarde aqui na redação, preciso terminar algumas coisas logo.
- Tudo bem, entendi.

E ele saiu e sentou-se em sua mesa.

Aos poucos o céu foi escurecendo, e a noite - ainda quente. - dava seus ares. Comecei a recolher meus pertences aos poucos, e quando me virei para jogar um papel no balde de lixo, vi o Pedro. Ele ainda estava lá. Mas não estava sentado em sua mesa. Estava sentado na da Édina. Ela era a única que possuía uma cadeira cem por cento acolchoada.

- Se eu fosse você não me sentaria aí, ela não gosta que outros corpos possuam o lugar que é dela. - Falei.
- Ela não está aqui para saber disso.
Eu dei de ombros.
- Você não deveria ter ido embora a um tempo? - Perguntei.
- Deveria, mas resolvi te fazer companhia.

Eu dei de ombros, novamente.

- Você foi legal comigo quando eu cheguei aqui, queria poder retribuir.
- Não há nada que possa fazer. Mas, grato.
- Calma, eu trouxe sorvete.

Talvez aquilo fosse um golpe baixo.
Eu sempre amei sorvete. Digamos que até demais. E tomar sorvete, numa sexta-feira a noite, após um longo dia de trabalho, era tudo que eu precisava.

Instintamente nos sentamos no chão. Perto da minha mesa de trabalho. Ele abriu o pote de sorvete, que havia começado a descongelar. Provei, mas não era o meu favorito, mas era bom. Nunca gostei de sorvete de chocolate.

Havia só uma lampada acessa. Mas a luz do lado de fora da janela conseguia iluminar todo o resto.

Começamos a conversar sobre muitas coisas. As mais bestas. De como quando ele havia fugido de casa por uma semana. Ou de preferir sorvete de maracujá, mas na cidade não vendia. De quando ele havia entrado numa briga para salvar seu irmão mais velho. Pedro era um louco. Talvez insano.

- Eu quase nunca fiz um terço de tudo que você já fez.
- Deveria fazer. - Falou ele. - A melhor coisa da vida é viver. Sempre é viver.
- Sim, concordo. Mas, acho que a vida sempre propõe coisas absurdamente loucas, e elas acabam perdendo o controle. Eu gosto sempre de ter o controle de tudo.
- Perder o controle, é se achar de outra forma. Talvez você precise as vezes.
- Está dizendo que eu preciso enlouquecer? - Perguntei.
- Sim, estou dizendo que você precisa enlouquecer.

Rimos.

- Eu pensei que você estava me evitando depois que eu falei aquilo no jardim suspenso.
- Por que eu estaria?
- Não sei, nem todos aceitam.
- Eu sei disso, mas não sou como todos.
- E como você é?
- Sou como eu sou. Sou apenas eu. Uma fagulha. Uma gota. Um outro mundo.

Ele não disse nada. E eu o entendo. As vezes eu sou um pouco complicado de se entender. Eu mesmo as vezes não consigo me entender. Mas esse sou eu. Aquele ser mais complicado do mundo, com as ideias mais complicadas ainda. Com os pensamentos acelerados a cada instante.

Ele colou a mão no meu joelho, e olhou para mim.

- Não somos normais. Não como todos.

Senti ele se aproximar de mim, mas eu deveria fugir, como eu sempre faço, fugir de tudo. Mas não consegui fugir. Não consegui sair dali. Droga, eu devia. Mas não queria. Permaneci ali. O que ele poderia pensar sobre mim? Ele se chegou mais junto. E então tudo ficou escuro, mas as energia não havia acabado, mas sim, meus olhos haviam se fechado.

O que posso dizer quando saímos do jornal? Ah, sentamos na praça, e conversamos. Na mesma praça que eu via todos os dias. Sentamos num banco cinzento e ficamos observando a multidão de pessoas passarem. Muitas nem sabiam para onde estavam indo. Muitas estavam perdidas de si mesmas.

Naquele momento eu me sentia perdido de mim mesmo. Mas, o Pedro tinha razão. Perder-se as vezes é se encontrar de uma outra forma.
Eu estava me encontrando.

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