35- CALMARIA (Parte I)

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— O que quer dizer que ele trouxe esse tesouro de fora? — Tentei acompanhar seu raciocínio maluco.

— O que quer dizer que não estamos dependendo do dinheiro de Netuno. — Tony abriu um sorriso. — Ainda que eu esteja meio curioso pra descobrir como Lorde Tritão conseguiu juntar essa fortuna. Se isso foi o resultado de um saque, devem ter roubado o ninho do castiço mais poderoso do mundo!

Ao avistar Flora aparecendo no horizonte senti meu fraco espírito explorador se despedir de uma vez por todas: tinha certeza de que nunca mais abandonaria o centro de Arasmo por vontade própria.

— Nos separamos aqui, Anthony. — Disse Fernando, quando nos encontramos no porto para a despedida. Ao que tudo indicava, ele não passaria a noite em Flora. — Partirei para Gris, esconder os comandantes de Hugo antes que chamem muita atenção do Exército. Na verdade, é uma loucura atracar desse jeito na Flora Vermelha. — Riu amistosamente.

— Nos encontramos em Cast em sete semanas?

— Exato. No primeiro dia da lua cheia. Me encontre na praia ao extremo leste de Cranius Cast. Receberemos os exércitos juntos. — Repentinamente, o sorriso deu lugar a uma expressão séria. Fernando olhou nos olhos de Caleidoscópio: — Não perca a data. Não ficaremos esperando por um dia sequer.

— Pode contar comigo.

Despedidas cordiais antecederam a partida de Fernando e de meus assistentes de navegação. Àquela altura, já tínhamos aprendido a confiar nele. Não me restavam dúvidas: ele cumpriria com a sua parte do trato.

Tentamos não gastar tempo desnecessário em Flora. Mesmo assim, a viagem prolongada nos exigiu alguns dias de recuperação. Depois de conseguir a melhor segurança possível para nosso grande navio, procuramos comida de verdade e uma boa hospedaria para passar a noite.

Pensei em ir até um enfermeiro para garantir o fim da cicatrização das minhas costelas, mas me senti desmotivado quando todas as indicações de nativos me apontavam a residência de um velho, localizada no centro da floresta.

— O que ele faz até parece magia. A dor passa no momento em que você ingere as suas poções. E só pede um pouco de sangue em troca. Nenhum modesto a mais!

Eu não estava disposto a me arriscar no meio do mato para encontrar um sujeito macabro como as descrições faziam parecer. Na verdade, a dor já tinha diminuído bastante. Com sorte e algum tempo de repouso, eu poderia me virar sozinho. Portanto, passei o dia seguinte negociando nossa grande embarcação em troca de uma escuna menor, mais adequada às nossas necessidades.

Não consegui nenhum dinheiro nas negociações, apenas uma embarcação menor e menos valiosa, para o qual todo o tesouro de Caleidoscópio foi transferido. Não me importei, afinal, estávamos ricos. De qualquer forma, eu precisava de um veículo o qual eu tivesse certeza de que seria capaz de velejar sem ajuda de ninguém. Por fim, substituí nossos estoques de comida.

Enquanto eu cuidava do básico, Caleidoscópio quebrava a cabeça tentando encontrar meios de se comunicar com Lorde Tritão e os Mentirosos.

— Não tem jeito. — Ele concluiu, depois de algumas horas fuçando a papelada que sempre carregava consigo. — Teremos que ir até eles. Romeo, me diga que ainda sabe como chegar lá.

— Não sei. — Lamentei. Havia queimado as instruções de Cont da primeira vez. Muitos meses tinham se passado e eu não era capaz de lembrar da localização exata. Tentar a sorte poderia desperdiçar nosso tempo precioso.

— Não acredito... E agora?! Talvez devêssemos pedir ajuda para Ariel... Ela nunca sai de casa, mas Ilusão de Gelo fica longe. O ideal seria contatar August o quanto antes!

Eu entendia, mas não havia nada que eu pudesse fazer. Sem nenhuma ideia melhor, fui para a cidade tentar conseguir um jornal.

Perguntei por Zenit para oficiais do Exército, comerciantes e civis. Apesar de seu nome ser conhecido e associado à tragédia na Taverna Roxa, ninguém fazia ideia do seu paradeiro. Nem mesmo os nossos pescadores, os quais encontrei no porto, voltando de uma viagem, sabiam quando retornaria.

— Ele nos deixou um grande pagamento adiantado, e disse que voltará com mais. Atualmente está atrás de uma cabeça bem valiosa, é o que eu ouvi dizer. Mas Zenit não fala sobre isso conosco. Aliás, não era você o seu fiel companheiro? O foi trocado por aquele ruivo?

— Ainda trabalho com Zenit. Apenas nos desencontramos.

— Bom, nesse caso, vai ser bem difícil achá-lo de novo, ainda mais se você esperar aqui. Apesar de não estar sendo perseguido pelos soldados, nunca mais apareceu em sua mansão.

— Mansão?

— A sede da empresa. Logo ali na praça principal da Flora Vermelha! — Riu o pescador diante da minha incredulidade. — Você parece bem por fora para quem diz ainda trabalhar para ele. Ele sempre manda o pagamento em dia, mas nunca vem pessoalmente.

Agradeci e voltei para a hospedaria, surpreso com a rápida ascensão de Zenit. Na verdade, talvez a minha preocupação fosse boba. Zenit era esperto e forte.

Teria partido de Arasmo em tão pouco tempo? Era improvável, mas eu não duvidava de suas capacidades. "Ou talvez esteja atrás dos livros perdidos", lembrei, cheio de culpa. De uma forma ou de outra, eu não podia largar tudo para ir atrás dele.

Ainda estava atrás de um jornal quando, sem que eu me desse conta, meus pés me levaram até a fachada da Taverna Roxa. "Seria um bom lugar para esperar por ele, caso não estivesse fechada para sempre", pensei.

Nenhuma grande diferença era visível. Aquele lugar sempre pareceu decadente demais para um estabelecimento ativo. Eu estava pronto para virar as costas e caminhar rumo a uma área mais movimentada da cidade, quando minhas memórias reproduziram o brilho de dois pequenos objetos.

Os brincos de pérola de Dona Maria.

Pensando bem, ela não estava usando eles no dia da batalha. Estariam escondidos em algum canto no meio daquela casa abandonada?

Senti a respiração acelerar. "Isso é patético", minha mente me alertou sobre a imoralidade do ato que eu estava prestes a cometer. Ainda assim, era impossível controlar a euforia diante da constatação: talvez aquele fosse o dia em que eu encontraria, enfim, a minha pérola. Duas, se tivesse sorte.

"Se os brincos estiverem lá dentro, terá sido obra do destino", convenci a mim mesmo.

Me deparei com a porta destrancada. Eu não era o primeiro a invadir o estabelecimento abandonado. Ou talvez ninguém tenha se dado ao trabalho de proteger a velha espelunca. Será que o corpo de Dona Maria ainda estava jogado lá, apodrecendo, logo em frente a porta? Não importava. Tomei coragem e adentrei o salão comprido e mal iluminado.

Aquele lugar parecia ainda mais decrépito durante o dia. As frestas largas nas paredes e no teto de madeira faziam com que a luz do sol, forte lá fora, invadisse o cômodo em estreitos feixes.

O chão estava mais empoeirado do que costumava ser, e alguns restos de comida e bebida abandonados sobre as mesas serviam de alimento para larvas de mosca. O buraco feito pelo canhão, meses atrás, foi coberto por um pedaço de tecido.

Ainda assim, a destruição causada pela batalha gritava aos olhos: cadeiras quebradas, o chão de madeira danificado, copos e garrafas no chão e algumas manchas de sangue.

Trouxemos a ruína para a Taverna Roxa. Felizmente, o exército havia recolhido todos os cadáveres.

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