24- FLORA

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Flora está maravilhosa. Caminho por uma rua de paralelepípedos escuros e brilhantes, sentindo o atrito macio da pedra bem polida contra a sola dos meus sapatos. Apesar do dia nublado, as cores da cidade gritam aos olhos.

São flores de todo tipo. Margaridas alaranjadas nos canteiros públicos. Trepadeiras de folhagem vermelha ligando a marquise aos pequenos postes de luz, que ainda não foram acesos a essa hora da tarde. Para completar, os jardins verticais preenchendo a fachada da maior parte das casas.

Não estou sozinho.

Lá estão elas, indo e vindo, exalando seu odor humano, poluindo a atmosfera paradisíaca. Dezenas de pessoas em constante movimento. Todas elas falam ao mesmo tempo, é impossível distinguir as palavras, muito menos tentar extrair algum sentido.

Ainda assim, entretanto, dá para ouvir uma melodia em meio aos burburinhos. Como se cada silhueta que passasse por mim estivesse emitindo o som de uma nota. Se parar para prestar a atenção, é uma música conhecida. Uma cantiga popular do Leste, quem sabe?

Lá está ele, do outro lado da rua. O tamanho absurdo, o nariz protuberante, os cabelos escuros. Era Tam. Ou seria o gigante Tomas? Atravesso com pressa, caminhando a passos rápidos em sua direção, mas é tarde demais. Ele vira a esquina e já não vejo nenhuma silhueta alta como a de um gigante.

Acordo. Acabei dormindo encostado em um poste. Que estupidez. As pessoas em volta me olham torto. Elas tem razão. Eu deveria voltar para o navio. Mas o que é esse aroma maravilhoso? Vem do lado esquerdo da rua. Sim, da parede coberta de pequenas flores brancas. Aproximo o rosto daquelas dádivas divinas. Eu preciso comprar algumas dessas para colocar em minha cabine no navio. Tam está morto, não tem como ser ele. Mas como Tomas conseguiria sair de Cast sem nenhum tipo de embarcação? Será que teve ajuda de mais alguém?

Acordo com um toque nos ombros. Droga! Dormi com a cara enfiada em um dos vasos de flores brancas da parede. Agora alguém está rindo atrás de mim. Minha boca está suja de terra, cuspo no chão antes de me virar para o espectador divertido. É uma moça. Pequena, cabelos negros até a altura dos quadris. Por alguns segundos a tonalidade castanha, quase amarela de seus olhos me deixa perplexo. Logo em seguida tento murmurar um pedido de desculpas. Não é legal sair por aí comendo terra dos vasos alheios.

— Não se preocupe. — Ela responde, ainda dando risada. — Você está bem?

— Sim, eu... Eu queria saber o nome dessas flores. O aroma é maravilhoso. São lindas também.

— Eu não sei o nome. Meu pai quem cuida delas. Mas pode levar uma muda, se quiser. — Com os dedos ágeis e delicados, tira uma das plantas do vaso com a raiz. Recebo com as mãos em formato de concha.

— Muito obrigado.

— Você gosta de flores?

— Sim, bastante. — Mesmo completamente alterado, ainda sou capaz de conversar como uma pessoa normal. Ao menos é o que acredito. — Minha vida em alto-mar não me permite cultivar muitas, de qualquer forma.

— Eu conheço um lugar cheio de flores diferentes. As mais belas. Você me acompanharia?

Depois ser recebido com tanta gentileza, não posso recusar um pedido singelo como esse. A jovem segura uma de minhas mãos e me guia por entre as ruas de flora, através de caminhos completamente novos. Antes que eu seja capaz de me dar conta, estamos parados em frente a uma enorme praça coberta de canteiros de flores. Tem a área de mais ou menos quatro quarteirões algumas trilhas de terra no meio. Cidadãos passeiam entre os caminhos e sentam-se nos bancos espalhados pela praça. Seguimos o exemplo deles. Ali predominam os cravos vermelhos e cíclades de coloração mais suave, em tons de branco e cor de rosa. A flores viram os seus pequenos rostos, como que nos acompanhando com o olhar conforme caminhamos até o centro.

Parecem velhas conhecidas de minha guia.

Ela caminha a passos firmes, fazendo com que a saia volumosa acompanhe o movimento de seus passos, e as flores por sua vez acompanham com o olhar. Não deixam nada escapar. Nem mesmo minha inconveniente presença, a qual observam com ligeiro estranhamento. Eu respondo com um olhar faminto e insolente. Para a minha sorte, elas que estão ali para a observação e julgamento humano. Um mar de pétalas, não importa o lado para o qual eu olhe. Estou tonto. Sou convidado a sentar.

— Já tinha vindo aqui antes? — A moça pergunta.

— Não.

— Gostou?

— Acho que sim. Mas os cravos não parecem ter gostado muito de mim.

Ela ri muito e permanece me encarando, como se eu fosse um palhaço, esperando ansiosamente para descobrir qual a próxima idiotice a sair da minha boca. Infelizmente, não consigo pensar em nada.

— Não deveria tentar nada contra eles, de toda e qualquer forma. Você sabe, estamos na Flora Vermelha. Eles poderiam chamar os soldados a qualquer momento. — A julgar pelo tom de voz, está sendo sarcástica.

Então o vejo pela segunda vez. A silhueta de Tam de costas para mim, longe na rua paralela à praça. Começo a correr no mesmo instante. Dessa vez, não posso perdê-lo de vista. Você ainda está vivo? Ou será o gigante Tomas? Piso em falso no meio—fio. Estou caindo.

Acordo. Parece que adormeci no meio da praça. Na verdade, dormi encostado nos ombros da moça. É desnecessário dizer que ela está quase sem ar de tanto rir. Não importa. Essa merda já passou dos limites. Uma coisa é comer terra, outra coisa é sair por aí dormindo em cima dos outros. Eu precisava me controlar.

— Me desculpe. — Falo rapidamente. — Obrigado pelo passeio, mas preciso partir. Foi um prazer.

— O prazer é todo meu. — Ela responde em tom de quem não acredita em minhas capacidades de ir embora sozinho a pé.

Talvez ela tenha razão. Nesse momento eu deveria beijá-la, não? É o que meu irmão faria. Engulo em seco. Sabor de ferro. É mesmo, eu tinha terra na boca. Não seria muito cortês beijá-la em tais condições. Talvez uma reverência segurando uma de suas pequenas mãos? Não. As palavras de agradecimento devem bastar. Mas então porque ela continua sentada aqui, olhando para mim? Lembrei. Eu disse que preciso ir embora. Pensando bem, nem me lembro como voltar para o barco.

Fecho os olhos. As convenções são claras. Se ela quiser, pode me beijar agora. Para minha surpresa, sinto uma superfície dura e gelada pressionada contra os meus lábios.

Acordo. Estou deitado no banco sozinho, beijando a madeira. De acordo com a posição do sol, dormi por, pelo menos, duas horas.

Os cravos riem de mim. Eles têm razão.

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