Juntando os pedaços | √

Cinco

Cicatrizes a mostra.
30 de Abril de 2019

Por volta das cinco da tarde o café ainda estava tão cheio que era quase impossível caminhar entre as mesas. O sol começara a se pôr, enchendo o céu de tonalidades diversas de laranja, dando algo a mais na vista. No entanto, aquela claridade causava uma irritação nos seus olhos o fazendo fecha-los o tempo todo. As garotas da mesa ao lado parecem achar que aquilo é um toque ou até mesmo uma espécie de paquera, já que estavam lançando sorrisinhos a todo instante.

Não eram de seu costume sair do escritório antes das seis, mas a sensação de angústia que sentia em relação a todos os acontecimentos envolvendo o seu passado e o seu trabalho fez Benício tentar tirar uma folga de algumas horas, em um dos lugares que ele e os seus amigos mais frequentavam durante o dia. Quase todos estavam lá, o que resumia a Marcos, Isa e Aline, faltando apenas Nathan para completar o seu grupo. Uma conversa animada rodeava a mesa enchendo o ambiente de altas risadas e brindes. Ao seu lado, uma das moças de fios encaracolados apreciava tão calmamente o seu café, olhando atentamente para a xícara, parecia estar em outra órbita, em algum pensamento tão complexo que mesmo se alguém a chamasse não voltaria a realidade. Ficou tentado a perguntar no que estava pensando, ainda assim se deteve, eles não eram amigos e qualquer questionamento assim poderia a afastar.

Tinha se passado duas semanas da chegada das duas mulheres em seu apartamento, desde que ele arranjou uma nova secretária e uma ajudante para Isa em tempo recorde, Márcia e Maria nessa mesma ordem. Naquela manhã em que recebeu uma das notícias mais complicadas dos últimos anos, conseguiu ajudar as meninas recém chegadas, não admitia em voz alta, todavia, estava tão orgulhoso de si mesmo. Sabia que tudo que tinha pensado quando estava a caminho de casa naquele dia tinha ido pelo ralo, o que não era tão difícil de acontecer, seu coração era de manteiga, era questão de segundos para se sensibilizar, no entanto, ver que tinha sido fundamental na reconstrução de alguém enchia o seu peito de entusiasmo, gostava de se sentir essencial.

-Você está tão quieto, Ben.-observou Aline tocando levemente em sua mão, os olhos brilhantes da garota o encarava de forma preocupada. Estava tão mergulhado em si que o toque o fez olhar para cima, encontraram-se com Maria que logo se prontificou em desviar o contato visual. Tentou sorrir enquanto cuidadosamente desviava da mão de sua amiga, aquilo ainda não era recebido de uma forma boa, lembranças remotas tomam sua mente.-Aconteceu alguma coisa no trabalho?

-Ele é sempre assim.-sua colega de apartamento mais antiga disse dando uma risadinha, que foi acompanhada por Márcia. As duas estavam se tornando, gradativamente, amigas. Ao contrário da outra, que por todo o tempo permaneceu calada, respondendo só quando necessário. Existia uma diferença notável na personalidade e atitudes das duas, a forma leve e extrovertida de Márcia era admirada por todos a sua volta desde pequena, enquanto tudo que podia ser dito de Maria era que era uma garota tímida de poucas palavras, assim como Ben se definiria em alguns meses atrás.-As vezes me esqueço que ele também está em casa.

Logo quase todos começaram a conversar animadamente sobre uma das viagens extraordinárias do casal Marcos e Isa, voltando o foco para o outro lado da mesa. Ben suspirou aliviado, não gostava de ser alvo de perguntas como aquela, era íntima e a resposta sempre era diferente do que realmente queria dar, não estava bem a tanto tempo, era complicado esconder o que a meses havia se tornado parte da sua rotina. Não havia contado a nenhum deles o assunto da conversa com o seu advogado, que por sinal estava ignorando desde o último encontro, aquela questão acabava tanto com a sua sanidade, que a melhor forma de não enlouquecer era ignorar por completo tudo em relação a ela. Queria mais tempo, as cicatrizes estavam todas ali, querendo sangrar mais uma vez, se não fosse cauteloso iria entrar em mais uma crise sabe-se lá como sairia dela. Mesmo tendo noção que quanto mais cedo tomar as devidas providências mais rápido tudo seria resolvido e que com toda certeza que uma hora ou outra o Alcântara iria o encontrar.