Capítulo 80 - Dor

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— E os camaradas?

— Sei lá. Correu um pra cada lado, foi um salve-se quem puder.

O médico voltava com uma bandejinha contendo uma ampola e uma seringa de aspecto nada atraente.

— O que é isso? Não falei para trazer uma pílula?

— Achei morfina num canto da farmácia — respondeu o médico. — É bem mais eficiente.

Pousei um olhar dúbio nas mãos do rapaz de óculos, que preparava a injeção.

— Tem certeza? — balbuciei. — Será que é mesmo caso para... AU!

A picada, apesar de rápida, me surpreendeu e obrigou a ficar um momento quieta. De início o estômago embrulhou, mas acho que foi de raiva por terem me espetado sem dar ouvidos aos meus protestos. A náusea passou rápido, no entanto, e com ela as ondas de dor que tinham se espalhado para as costas e para o ombro.

— Como se sente? — perguntou o esculápio. Em sua voz transparecia certo orgulho da própria eficiência.

— Melhor — admiti.

— Já costurou tudo? — Astrakhanov questionou, objetivo. — Ela pode ir embora?

As sobrancelhas do doutor elevaram-se visivelmente.

— Não é recomendável. O melhor seria mantê-la por um ou dois dias em observação. Aqui trocaríamos os curativos em condições sanitárias adequadas e...

— Me dê gaze, então — Astrakhanov interrompeu. — E... iodo... e o que mais precisar pra fazer tudo isso aí que você disse. Anda! — apressou, soerguendo o fuzil e fazendo o profissional desaparecer rapidinho.

— Está certo, não posso ficar aqui — eu disse, sentando-me. Um arrepio percorreu minhas costas adormecidas e a tontura me balançou por um segundo, mas logo estabilizei e girei as pernas para sair da maca. — Ainda tem muita luta pela frente.

Os olhinhos azuis de Astrakhanov pousaram em mim com uma expressão enigmática.

— O que foi?

— Corre um boato de que as tropas inimigas já estão se aproximando por terra e que Natal vai ser bombardeada pelas forças getulistas.

— E daí? Boataria é boataria. Não duvido que sejam os integralistas que restaram na cidade que querem nos desanimar.

Um sorriso torto e triste crispou os lábios de Astrakhanov. Alçando a mão para o bolso da calça, ele sacou um papel dobrado e me entregou. O papel, manchado com o sangue da mão dele, ainda assim cheirava a tinta: a impressão era muito recente.

Meus olhos correram pelas poucas linhas, impressas em tipos grandes, e depois migraram para as paredes impecavelmente brancas da pequena enfermaria, para o leito desfeito ao meu lado, a lâmpada amarela que piscava logo acima, os instrumentos cirúrgicos na mesa de cabeceira, o bolo cáqui ensanguentado no chão, em que reconheci a camisa de Astrakhanov e a minha... Tentei de todo jeito evitar olhar para ele, porque eu entendera o sorriso torto, e não queria entender.

— Dizem... dizem a mesma coisa aqui — murmurei, por fim, rouca.

— A cidade está coberta com esses folhetos — ele informou. — Sabe o que quer dizer, né?

Infelizmente, eu sabia. Não era uma certeza, mas uma pergunta bem pertinente para qualquer um que soubesse como funciona o poder público: se era mesmo boato, por que faziam tanto esforço em desmentir?

Quando um governo se preocupa demais em acalmar o povo, algo de errado tem. E chega a ser difícil culpá-los: pânico generalizado pode tornar qualquer problema irresolúvel.

Dias VermelhosWhere stories live. Discover now