Capítulo 78 - Um bom motivo

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Proclamado o início de uma nova era para os natalenses e os brasileiros, o povo nos levou nos braços até a Vila Cincinato.

Bem, não exatamente nos braços, mas fomos escoltados por uma procissão, e os rostos curiosos que víamos pelas ruas nos saudavam com benevolência.

Nossos homens ainda guardavam o palacete. Vimos de longe suas expressões entediadas, e o ar intrigado que tomou seus rostos ao notarem a massa cantante se aproximando evidenciou que ninguém lhes tinha confirmado a vitória ainda. Os camaradas sentinelas começaram a pular, um deles deu alguns tiros para cima sob um olhar de censura de Quintino e uma gargalhada dos demais. Eu ri também.

O triunfo tem um gosto tão bom e tão raro que te põe criança de novo.

Aliviada a euforia, os camaradas sentinelas nos guiaram num passeio turístico pela mansão do governador. As pancadas de nossas botas no chão de mármore quadriculado ecoavam pelas amplas salas de pé-direito alto, enquanto nós perambulávamos, discutindo o melhor modo de nos instalarmos. Das paredes em tom pastel dos corredores, os antigos governadores contemplavam nossa movimentação com horror e desprezo. Se a morte não lhes tivesse calado os beiços e encerrado em ostensivas molduras douradas muito tempo atrás, estariam praguejando contra o pulso débil de seu sucessor, que cometera o acinte de deixar o povo tomar o poder.

Designamos rapidamente gabinetes para cada secretaria e uma sala ótima para servir de prisão — a do quartel já estava cheia com os próprios militares, e a penitenciária fora temporariamente desativada. Decidimos, porém, que o atendimento ao público seria feito no saguão mesmo e arrastamos uma mesa para lá, para ninguém ter que se arrastar de departamento em departamento quando precisasse de algo, segundo o costume burocrático. As salas privadas ficariam para armazenar documentos e para as deliberações sigilosas. Se era para revolucionar, íamos fazer direito.

— Camarada Valadares — Lauro chamou um jornalista que descera conosco desde o batalhão. Era um de nossos auxiliares forasteiros, viera para Natal com a caravana da ANL —, leve nossa proclamação para ler na rádio, faz favor. Aposto que quem não teve coragem de vir à praça está trancado em casa ao pé do aparelho na esperança de ter notícias. É bom que saibam que estamos no controle da cidade, tanto os simpatizantes como os nossos inimigos.

— Considere feito — respondeu o outro, com sua voz potente de locutor, ao receber do Secretário do Interior a folha datilografada que Praxedes acabara de ler.

Enquanto ele passava os olhos no conteúdo, Lago revirava os bolsos da calça, e por fim tirou deles mais um par de folhas meio amassadas, que alisou antes de repassar também ao jornalista.

— Isto aqui são os rascunhos das ordens dos Secretários do Transporte e do Abastecimento, eles já vão assinar os originais. Estamos baixando o preço do pão, do leite e do bonde. Acho que o povo vai ficar bem contente com essas novidades, e já abrem o coração para atender o que pedimos no outro documento. É um comunicado aos camaradas em armas e ao povo em geral, para que zelem pela manutenção da ordem, respeitem as pessoas e a propriedade privada.

— Precisamos garantir segurança aos comerciantes para que eles abram os armazéns amanhã — respaldou Praxedes, parando ao nosso lado, em meio à missão de organizar cadeiras díspares numa espécie de área de espera.

— Sim, com certeza — Valadares anuiu, recebendo os papéis, e verificando-os rapidamente. Deteve-se ao encontrar uma folha um pouco diferente. — E esse aqui?

— Ah, isso é uma cópia do comunicado — esclareceu Lago, tamborilando com o dedo na matriz, e saindo com ele roxo. — Entende, ele é muito importante. Não temos como garantir que todo mundo vai estar ouvindo rádio, e nem você pode passar o dia todo lá repetindo a mensagem, então quando terminar a transmissão, gostaríamos que você rodasse várias cópias a partir desta matriz e organizasse a distribuição pela cidade. Acha que dá conta? Papel ofício nós logo juntaremos aqui, o mimeógrafo... trouxemos da sua casa, não trouxemos, Camarada Anita?

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