Capítulo 12 - Sempre cabe mais um na linha de montagem

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Aquela semana não terminou sem que novidades viessem agitar nossa rotina de treinamento.

Russo era uma das matérias com maior quantidade de horas-aula e maior cobrança no início do curso, já que a nossa compreensão das outras matérias dependia, em parte, do quanto entendíamos a língua em que elas eram ministradas. Tínhamos avaliação em todas as aulas, o que nos motivava a um estudo extra no pouco tempo livre. Os temas propostos para redação e discursos eram complexos, as palavras gigantes e muitas abreviações do jargão bolchevique faziam nossas línguas desabituadas rodar até que não mais travassem, e, considerando a completa imersão no idioma – já que toda comunicação fora dos respectivos setores era em russo – nossos avanços foram rápidos e perceptíveis.

Assim, com pouco menos de um mês de aula, nossas avaliações já começavam a mostrar resultados satisfatórios, até mesmo as dos chineses, que tinham mais dificuldade que os outros, pois sua língua nativa não era sequer da mesma família linguística que o russo. Diante de tais progressos, a direção do setor deliberou que estávamos prontos para um importante próximo passo: trabalhar.

Astrakhanov nos chamou à sala dele na terça-feira, após a palestra noturna, e entregou a cada um uma folhinha de papel e uma muda de roupas.

– Acredito que vocês lembrem que o exercício de uma atividade proletária estava na programação do curso, certo? – ele, como de costume, foi direto ao ponto. – Pois bem, vocês foram considerados aptos a adotar de forma suficientemente convincente as identidades correspondentes a seus pseudônimos, e encaixados nas fábricas em que havia necessidade de mão de obra, para produção ligada à indústria de base. Vocês trabalharão lá no primeiro dia de cada semana, começando amanhã.

A semana de trabalho na União Soviética era um pouco diferente do que estávamos acostumados, e não coincidia com a semana tradicional do calendário – segunda, terça, quarta – que até existia, mas era irrelevante para esse fim. O mês se dividia em cinco ciclos, cada ciclo com cinco dias de trabalho e um dia livre. O dia livre caía sempre em números fixos: dia 6, dia 12, e assim sucessivamente. Confuso? Um bocado, para quem tinha vivido a vida inteira num sistema diferente, mas a essa altura eu já havia conseguido me adaptar, e entender por que Astrakhanov chamava uma quarta-feira de "primeiro dia da semana".

O tenente continuou:

– O transporte da escola os levará e buscará; fiquem atentos aos pontos de encontro indicados para cada um nas respectivas fichas de admissão. Todas as informações necessárias para iniciarem o desempenho das suas funções estão na ficha também. Boa noite.

E ele praticamente correu conosco da sala dele. Estava com cara de cansaço e a aparência desalinhada, como se tivesse acabado de voltar da guerra, e eu comentei isso para as garotas, quando retornamos para o nosso quarto.

– É que hoje ele deu aula de tiro para uma turma de tchecos particularmente desastrados – contou Ludmila, com uma risada. – Viktor sempre fica exausto quando pega essa turma.

Ergui as sobrancelhas, surpresa, mas não com a inabilidade da turma de tcheco. Abri a boca, mas a chinesa Tatiana antecipou-se à minha pergunta:

– Quem é Viktor?

– Oh... o Camarada Astrakhanov – Ludmila disse, corando levemente.

Fiz menção de trocar um olhar com Tatiana, movimento que ambas freamos, ao recordar que não tínhamos essa proximidade. E também não sabíamos que Ludmila era tão íntima de Astrakhanov a ponto de tratá-lo pelo primeiro nome e conhecer sua rotina. Mas nada disso era da nossa conta, então eu comentei apenas:

– Não posso rir dos tchecos, eu provavelmente darei mais trabalho que eles.

Tatiana sorriu. Ainda não tivéramos nossa primeira aula de tiro, e a perspectiva francamente me assustava. Sabia que ia ter que enfrentar esse medo cedo ou tarde, se eu possuía qualquer intenção de participar de uma revolução armada, mas o fato de ter a coordenação motora de um pato manco não servia para me passar segurança.

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