8 - Sem Compaixão

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- Isso significa que eles tinham como missão...

- Exatamente. - Donovan interrompia Garti - Tudo foi detalhadamente planejado. Tenho quase certeza que a mulher dragão tinha como objetivo matar o rei e levar este precioso tecido, que por sinal, é o corpo do falecido marido. - ele debochava de suas palavras.

- Este assunto é problema da rainha. Agora ela é o poder absoluto de Cronus. - Narcio responde um tanto feliz. Sem parecer que tinha acabado de perder o próprio pai.

- Avisarei a ela com certeza. Só me preocupo que ainda possa ter mais infiltrados aqui. Atrás disto.

- Ele quer sua permissão para esconder o tapete. - Garti diz rápido ao príncipe.

- Ótimo. Realmente é perigoso permanecer no quarto real. Ficarei com ele em meu aposento a partir de hoje.

- No seu quarto? - preocupava-se o guarda.

- Sim. - agora Narcio encara seu servo leal - E será você que irá levar. Vamos. - gesticulava para que Garti se apressasse.

Donovan franzia a testa tão preocupado quanto o outro:

- Voce tem certeza?

- Toda. A decoração do meu quarto não está perfeita. Agora vai ficar.

***

Se passaram dois dias desde o atentado no castelo. Quase toda a cidade foram presenciar o ritual da passagem dos mortos - que contando com o exército de Cronus e os civis, eram mais de trezentos cadáveres. Muitos deles foram amontoados para caber em exatas 25 piras; todas em cima do Monte do Carvalho, o penhasco mais alto do reino.

Em toda a vasta terra, acreditavam que a única forma de ir ao encontro dos deuses, precisava ter o corpo queimado para que a alma, em forma de fumaça, subisse aos céus. E quanto mais alto o local, mais fama e poder teriam na outra vida.

O rei teve sua pira exclusiva no pico daquela montanha, bem mais sofisticada que as outras. Ao lado da dele, havia duas em cada lado. Uma estava o corpo de Niel, o leal e querido comandante do exército que dedicou anos protegendo o reino. Na outra, por respeito a Lyga que se tornou oficialmente uma princesa, estavam os pais dela. Limpos, usando uma veste da nobreza, e de mãos dadas.

O Ancião, após suas últimas palavras da oração, deu a permissão. Garti caminhou com uma tocha entregando a rainha Noemya.

Ela expressava-se fria e séria. Não estava triste, mas nem feliz. Poderia estar voando em pensamentos admirando aquela paisagem, onde dava para ver a extensão do rio Estreito, e além dele, mais e mais montanhas que bloqueavam a visão do horizonte quilômetros dali.

Ou talvez apenas fazendo o seu papel, o que todos esperavam e com atenção voltada nela. A mulher mais importante para aquele povo, com postura e plena, enfim incendiava a pira bem feita com os restos mortais de seu marido.

Há metros de distância da rainha, estava seus três filhos e Lyga. Um ao lado do outro.

- Não consegui chorar. - Lara murmurava para Narcio, ao seu lado, mas atenta a ação da mãe. - Eu amava nosso pai, mas... Não caiu uma lágrima se quer.

A princípio, Narcio admirou-se com a afirmação de sua irmã de doze anos. Por fim, sorriu expondo:

- Está tudo bem. Voce não é a única, Lara. - disse, também com os olhos na rainha.

Ao lado dele estava Lyga, com o rosto em parte sendo cicatrizado pelo veneno. A jovem tinha perdida sua visão por completo. Naquele momento, não havia mais lágrimas para cair. Todas se foram nos dois intensos dias que chorou pela sua situação, e pela perda dos pais.

- Agora estão queimando. A alma deles estão subindo. - dizia Luke envolvendo seu braço ao corpo da princesa.

- Queria ter esse poder de ver as almas. Sinto apenas o cheiro... de fumaça. - dizia com certa raiva.

Dito isto, ela foi abraçada com mais força por Luke. Agora mais do que nunca ele se sentia na obrigação de a proteger do resto do mundo.

Narcio fitava ambos com o canto do olho sem fingir estar enojado.

Com a rainha pondo fogo nas três piras, era a deixa para o restante do povo incendiarem as outras vinte e cinco.

***

Neste tipo de ritual, era comum e respeitoso permanecer por longos minutos admirando as chamas e orando pelos entes, alguns ficavam por horas, até as cinzas apagarem a última brasa acesa.

Não era o caso de Narcio. Ficar em pé por dez minutos como um príncipe complacente já estava ótimo. O jovem desceu alguns metros indo ao encontro de Manna, que como ele, também era rebelde com as tradições.

A amiga estava de braços cruzados escorada na única árvore que existia naquela motanha. Era um gigantesco e raro carvalho branco, o que dava nome ao monte. A árvore transparecia uma aura mágica por conta da coloração de suas folhas. De fato, o caule, os galhos e as folhas eram inteiramente brancos.

E Manna mastigava uma delas, sorrindo enquanto o príncipe aproximava.

- Isto é fome? Tendo que comer até folha suja do chão.

- Devia experimentar, é delicioso.

Estava no início do inverno, o frio começava a dominar aquele fim de tarde. Mas o clima se mostrava agradável naquele local onde o calor das fogueiras se fazia presente. Ambos, naturalmente juntos, sentavam apoiando as costas no espesso tronco.

Narcio iniciava um assunto observando preguiçosamente o povo diante das fogueiras a metros dali:

- Voce não me disse como saiu do salão no dia do ataque.

- Ah, durante a cerimônia eu estava sentada lado de Balter. Antes da invasão ele me alertou que haveria uma matança...

- Sério? - a interrompe, desta vez encarando seu rosto com espanto.

- Sim. Ele até levou duas lindas adagas por garantia. No caso, eu fui a garantia da saída dele de lá. - a jovem, orgulhosa, não deixava de destacar seus méritos.

- Então ele sabia o tempo inteiro que o rei e centenas de pessoas iriam morrer naquela noite.

- Talvez. O rei, ele tinha certeza da morte. Balter foi esperançoso para o casamento apenas por isso. - Manna explicava plena cortando uma folha com a mão enquanto Narcio a encarava assustado como uma criança ouvindo um conto de horror.

- Eu não fazia ideia de que este vidente é tão maligno e mentiroso a esse ponto. Ele mentiu para o rei.

- Não seja dramático, Narcio. Balter fez um favor ao reino. Eu, você, todos aqui não gostavam de seu pai. - agora, a moça intimidava com a voz firme.

- A questão é que eu estava até ansioso para uma consulta com ele. Estou tentando concretizar algo que já planejava a muito tempo.

Nesse instante, ambos trocam olhares confiados.

- Com você, Balter será sincero, não tenho dúvidas. Posso ir contigo para a visita.

- Tem como recusar este convite?

- Não é um convite, seu iludido - Para a pergunta debochada, o príncipe recebe um soco no braço seguido de risadas dos dois. - Mas que plano é esse que vossa alteza está anos imaginando?

Narcio aguardava por este momento. Precisava vomitar todos os pensamentos de seu projeto com sua melhor amiga.

O sol ia se pôr, as pessoas desceriam o monte. As chamas iriam apagar. Mas eles ficariam ali no frio o tempo que precisassem.

...

A Ordem de CronusOnde as histórias ganham vida. Descobre agora