Lembro-me dos instrutores, do sistema cruel estabelecido pelos Venites. As flechas voam e junto com elas o meu ódio. Em pouco tempo, estou tremendo e já é difícil mirar com precisão. Enfim, me viro para o lado e vejo o buraco da flecha certeira que Charles havia acertado na primeira vez que estivemos aqui. Imagino um rosto para ele, o rosto de quem atribuo toda a culpa: Tairone Félix.

Me viro, retesando o arco, mirando com o máximo de precisão que consigo. Ao soltar a flecha, ela segue sua trajetória e penetra ao lado do orifício da flecha de Charles. Pelo menos na minha mente, acertei Félix no meio da testa. O tremor avança para as minhas pernas e caio de joelhos, esgotado. A terra é boa, parece ser muito convidativa para acomodar meu corpo.

Assim como quando cheguei na Arena, faço uma análise fria de como me encontro: estou preso, meus amigos ameaçados de morte, não tenho mais Elisa, o sangue dos que eu mais detesto corre em minhas veias. Algo se adiciona: meu avô perdeu seus pais enquanto era Renegado – posso perder os meus a qualquer momento, pode até já ter acontecido.

Me obrigo a me levantar. Ter o sangue dos meus inimigos é o que me ajudará a acabar com eles. Os planos de Nícolas são os mais agradáveis para mim agora. Recolho as flechas, contando-as, e apago um pouco das evidências de que estive aqui. Coloco as flechas na mochila, mas me lembro dos lobos e deixo em posição no arco. Caminho de volta para a cerca, mas antes de me aproximar muito dela, ouço vozes e me escondo atrás de uma árvore e arbustos.

Esgueiro-me ao redor do tronco e vejo duas figuras: Félix e sua atípica visitante, Alvina Lênin – agora que consigo vê-la de modo mais nítido, ela aparenta ter seus mais de trinta anos, com certeza foi uma das mais velhas de seu período na Arena. Aparentemente não somos só meus amigos e eu que gostamos desse lugar reservado. Abaixo e fico em silêncio, prestando o máximo de atenção à conversa.

– Já se passou metade do ano e o descendente ainda está vivo. Como me explica isso? – pergunta Alvina Lênin.

– Você sabe que não funciona assim, não podemos sair matando qualquer um...

– Félix, isso é a Arena! É a nossa Arena!

– E é por isso que temos de ter cuidado. Você pode ser uma dos nossos governantes, mas eu lido com Renegados problemáticos quando você ainda tinha espinhas no rosto.

– É bom que saiba o que está fazendo, a Câmara de Juízes está levantando algumas questões sobre o que está acontecendo aqui, deve ter alguém manipulando informações lá dentro. Se eles conseguirem provar que fugimos do sistema aleatório de mortes, sabe o que vai acontecer, não é?

– Claro que sei. Planejávamos matá-lo na Resistência de Agricultura, mas os executores não encontraram nenhum motivo válido.

– Você tem um executor aqui dentro acima de qualquer suspeita, use-o, ele não precisa de máscaras.

– Já querem colocar sangue nas mãos dele? Certo, vou avisá-lo.

A voz de Félix me causa ódio maciço. Eles estão tramando minha morte. Automaticamente, meu braço se levanta e miro a flecha na testa dele, agora posso acertar a verdadeira. Pucho a flecha de modo que ela terá força suficiente para atravessá-lo. Tenho certeza que consigo fazê-la passar por entre as aberturas da grade.

– Se o descendente não estiver morto até o fim desse ano, nós mesmos nos encarregaremos disso e você pagará o preço. Não podemos dar brechas para ninguém.

O diretor abaixa a cabeça, expondo-a ainda mais para mim. Estou quase soltando a flecha. Um suor frio desce em minha testa. Vem na minha mente o sorriso de Elisa, o que me convence de matá-lo agora. A Legítima também terá de ser morta para que eu tenha tempo, ao menos, de avisar meus amigos. Tenho certeza de que matá-los agora não me causará dor; eles carregam a culpa da morte de muitas pessoas, para mim será fácil carregar a morte de duas.

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