Capítulo 19

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Essa é a pior noite de todas. Sinto uma gritante dor por perder Elisa. Desejo desesperadamente voltar para casa, contar para meus pais o segredo sombrio de nossa família e fugir com os dois para alguma parte isolada do nosso mundo. Simplesmente sumir. Ainda quero me enganar com desculpas por não ter encontrado Elisa – ela pode ter ficado no apartamento o dia todo, pode não ter aguentado a pressão e se dado um dia de descanso. Mas ela não é egoísta a esse ponto.

A única coisa positiva é eu ter certeza de que não estou aqui por culpa do meu pai, embora ainda não saiba porque ele me pediu desculpas.

Me sento em cima da cama; olho para o lado esquerdo e vejo Rubens e Charles dormindo. Somos quatro agora e perder Elisa me fez ver que nada pode nos tirar daqui se não nós mesmos. Qualquer ajuda que eu receba de Nícolas não será suficiente quando a pena por errar for simplesmente a morte e nossas mãos ficarem atadas. A morte é previsível quando se é descendente de contraventores.

Se antes eu sentia a cama pequena, agora toda a Arena parece minúscula. Conto cada segundo dessa noite, até ela acabar.

Meus olhos esquentam e minha visão fica turva quando estamos nas filas para a ocasião das Honras; não vejo Elisa em lugar nenhum, mesmo verificando, dezenas de vezes, face por face nas filas de Rossine. Assim que o hino fúnebre começa, abaixo a cabeça e fecho os olhos. Sei que não suportarei ver o rosto dela no telão dos mortos.

O café da manhã é feito em silêncio, quase não comemos. Eu mesmo não como. Charles só encara as panquecas que tanto gosta, comendo um pedaço vez por outra. Não dizemos nada a respeito, nenhuma palavra de consolo, nenhuma palavra de conforto, nenhuma colocação de culpa. Lamentamos no silêncio mais gritante que a Arena poderia ouvir. Até os outros Renegados estão sentidos por nós – vez por outra vejo um deles perdendo o olhar em nosso meio. Para terminar de me massacrar, tem uma maçã bem na minha frente – a fruta que um dia deixou Elisa feliz por ver seus irmão satisfeitos.

Furor me sobe, agarro a maçã e a jogo contra parede, despedaçando-a. Todos olham para mim, dá para ouvir os talheres sendo repousados nos pratos. Os instrutores me encaram. Saio por entre as mesas e quando vejo, estou no meio da Praça Neutra, de joelhos.

Braços me envolvem, primeiro os de Suzana e depois os dos meninos. Choramos juntos o nosso luto. Ninguém veio atrás de nós, eles sabem que isso é particularmente nosso, ninguém ao menos reclamou por ter sido sujo pela maçã que espedacei.

As sirenes tocam nos obrigando a entrar nas salas.

Até onde consigo me concentrar, temos um novo instrutor, seu nome é Lucas, ele nos ensinará Tecnologia. Quando percebo que meus olhos doem, lembro que preciso piscar para lubrificá-los e quando meus pulmões ardem, lembro que preciso respirar.

Precisei perdê-la para reconhecer o que sentia.

Trocamos de sala. Agora estudaremos em um laboratório, cheio de computadores e ferramentas científicas. Obrigo-me a entender algo, porque, segundo Lucas, só teremos hoje para aprender as funções básicas de um computador, desde seu funcionamento até a sua montagem. Como sempre, ao final do primeiro dia de uma matéria, recebemos um pesado livro.

Volto para meu apartamento, está vazio. Passo para o quarto e fecho a porta, troco de roupas e calço uma bota, mas em seguida retiro-as e calço chinelos quando raciocino bem o que quero fazer. Coloco as botas na minha mochila junto com o arco desmontado e a aljava com as flechas.

Em nosso lugar habitual próximo ao centro de Conservação, pulo a grade e vou para a clareira que usamos da última vez para treinar o tiro de flechas. Fixo um alvo mental no tronco de uma árvore e começo a atirar, imaginando cada um daqueles rostos que controlavam os computadores da Resistência que matou Elisa. As flechas tinem ao vento, mas poucas atingem meus alvos.

Os RenegadosOnde as histórias ganham vida. Descobre agora