A transmissão se encerra.

– O diretor acaba de tirar as palavras da minha boca: não teremos todo o tempo do mundo para atravessar – digo.

– Eu estava falando sobre isso também – continua Charles. – Vocês não vão conseguir se precisarem de me arrastar.

– Ainda temos quatro horas para chegar no portão, de jeito nenhum vamos te largar aqui – respondo novamente.

Voltamos a andar.

Charles hora se apoia na lança e hora se apoia em mim ou em Rubens. Elisa leva a mochila dele. Num ritmo lento, mas constante, conseguimos andar por uns cinquenta minutos debaixo de um sol ardente, o que nos exige uma pausa. Charles senta em cima de uma raiz e estende a perna. Antes mesmo de eu tocar no ferimento, posso sentir o calor irradiando dele; quando abro a camisa, desenrolando-a da carne rasgada, o sangue mina por debaixo de uma camada de pus. Controlo-me o máximo possível para não fazer cara de repúdio.

– Vamos andar por menos tempo agora, fazendo paradas mais rápidas – digo.

– Vamos ter de esperar isso parar de sangrar um pouco para voltar a andar, não vamos?

Faço que sim com a cabeça.

– Então, me deixem, não vamos conseguir. Podem ir sem sentir culpa alguma.

– Ei, caçador! Você não vai se entregar! – digo. – Vamos sair daqui juntos.

Jogo a camisa ensanguentada no mato, já que ela não servirá para nada além de se tornar um peso desnecessário. Retiro a minha e cubro a sua carne moída com ela. Mais uma vez, estou dentro da minha jaqueta para me proteger do sol, ao mesmo tempo sendo cozido pelo calor.

Passos se aproximam de nós – começo a suar frio imaginando Leon Serato e sua faca. Dois garotos de Serpas surgem do meio das árvores à nossa direita e param quando veem o estado de Charles, mas dão as costas, seguindo para o portão. Não os condenamos por isso, eles não tem obrigação de nos ajudar e devem estar tão acabados quanto nós.

Voltamos a andar, num ritmo mais rápido, fazendo paradas mais constantes e mais curtas. Olho meu relógio, falta exatamente uma hora para o portão ser aberto e ainda não vemos nenhuma parte da cerca. Eu me lembro desse trecho quando passamos por ele no primeiro dia, e levando em conta a situação de Charles, não chegaremos a tempo nunca.

– Ainda temos uma hora. Charles, você consegue andar sem parar a partir de agora?

– Conseguirei, Pedro.

– Certo, então não vamos mais parar.

Ao longe podemos ver grupos de Renegados indo para a mesma direção. Após vinte minutos avistamos a cobertura das torres na Praça Neutra e uma parte da cerca.

Faltando vinte minutos para os portões serem abertos, avistamos finalmente a guarita e um sentimento intenso de ansiedade recai sobre mim, trazendo-me um desejo quase incontrolável de sair correndo o máximo que eu puder para chegar lá – mas é claro que não farei isso, Charles está bem do meu lado, pendurado no meu ombro, visivelmente aguentando para não cair. Sei que ele está aguentando muito mais por nós do que por ele mesmo.

Dez minutos... sete... cinco. Faltando exatamente três minutos para as seis da tarde chegamos em frente ao portão, com guardas armados do outro lado. Um sentimento intenso de vitória toma conta de nós – o sentimos quando nos entreolhamos.

– Charles, você conseguiu!

– Não, Pedro, vocês conseguiram. Obrigado!

Meus olhos percorrem os grupos de Renegados que nos cercam. Magros, trêmulos, abatidos, machucados, sujos – estamos todos acabados e destruídos. Há alguns com curativos mais feios do que o de Charles. Um Renegado, pelo modo como sua mão está envolvida em uma camisa, perdeu alguns dedos.

Os RenegadosWhere stories live. Discover now