Capítulo 72 - Ninguém passará

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— Tudo bem, é uma boa solução. Vou deixar Quatro de sobreaviso, para que os trabalhadores não desconfiem de mim.

Combinamos mais uma ou duas providências para o dia e Astrakhanov partiu. Decidindo que a louça podia esperar, rascunhei um telegrama criptografado e me apressei para o correio. Já na rua, notei a movimentação anormal em torno da agência. Um fluxo de pessoas, composto principalmente de homens atarefados, entrava e saía da lojinha normalmente vazia. Só o balconista magro e grisalho permanecia em sua placidez usual.

— Para o Norte não vai — ele gritou, num aviso para mim e para as outras duas pessoas que entraram junto.

— Por que não? — questionei, dirigindo-me ao balcão.

— Não soube, Dona Anita? Alguém cortou sete fios da rede no caminho para Macaíba. Também quebraram uns postes e uns isoladores, estragaram mais de dois quilômetros de linha — informou o funcionário. — Tem um pessoal lá tentando consertar, mas não se sabe quando é que vamos voltar a operar para aquele lado.

— Tem alguma coisa a ver com essa greve que acabou de eclodir? — perguntou outro dos clientes recém-chegados, com voz de locutor de rádio, repercutindo uma indagação que também me viera à mente. Cortar fio de telégrafo era típico trabalho diversionista, bem podia ter sido obra de algum dos nossos.

— É o que se diz à boca pequena... Mas a versão oficial é de que tudo está calmo e sob controle lá na Western. Mesmo que já tenham aparecido aqui uns dois assistentes esbaforidos com telegramas para a sede de Recife.

— A linha para Recife está funcionando, então? — perguntei.

— Perfeitamente. E para a capital também. É para o primo ou para a tia o telegrama de hoje, Dona Anita? — questionou o telegrafista, ajeitando os óculos e apanhando o meu bilhete para batê-lo, quando chegou minha vez na fila.

— Um para cada — falei, indicando no papel qual mensagem devia ser transmitida ao Rio, e qual aos vizinhos nordestinos.

— Grandes notícias na família, pelo jeito?

— Na verdade, grandes palpites — eu falei, já modelando uma desculpa para as modestas linhas de números que compunham os bilhetes, encimadas por enunciados irrelevantes. — Tive um sonho mirabolante, não dá para desperdiçar essas coisas.

— Estou pra ver família para jogar mais na loteria que a sua! — ele não conseguiu conter a exclamação. Eu ri amarelo, dispensando com um aceno os balbucios apologéticos do homem de meia-idade.

— Se sobra uma graninha no fim do mês, não custa investir para conseguir mais, né. Como dizem, dinheiro gera dinheiro.

Seu Gerônimo, o telegrafista, me olhou por cima dos óculos, e senti que ele ia redarguir, mas desistiu no meio do caminho e comentou apenas "Que bom que está sobrando, Dona Anita", terminando o trabalho em silêncio e me restituindo o rascunho e o troco.

Deixei a repartição com um nó na garganta e um pouco incomodada por ter saído da conversa com fama de burguesa esnobe, mas não tinha tempo para consertar a impressão. Ao lado do correio havia uma papelaria — isso sim é senso de oportunidade — onde comprei materiais para confeccionar cartazes, rumando direto para a casa de Quatro e Zefinha.

Eu, Zefinha, sua irmã e mais duas ou três mulheres trabalhamos parte da manhã e a tarde, preparando materiais para os grevistas. A vizinha ficou olhando os meninos, depois que eles voltaram da escola, para nos dar mais liberdade. Na hora do almoço, Zefinha foi levar comida para o esposo e para os colegas do sindicato, e voltou dizendo que estava tudo tranquilo na estação, paralizado, mas sem confrontos por enquanto. Outra esposa foi levar parte do material no meio da tarde e, lá pelas cinco e meia, eu rumei para a estação com o resto do que tínhamos feito, e alguns panos e outras coisas que eles usariam para acampar no trabalho durante a noite.

Dias VermelhosWhere stories live. Discover now