Capítulo 71 - Entre beijos e tapas

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Como aquele ali.

Suspirei e tirei o bule de café da boca acesa do fogão, aproximando dela a carta.

A verdade é que hoje as minhas memórias dessas cartas de amor é que são ridículas.

Servi um pouco de café, e me sentei à mesa, sorvendo o líquido negro enquanto contemplava o papel tomar a mesma cor e se desfazer em cinzas, à espera de Astrakhanov. Tínhamos que sair em alguns minutos e, mais uma vez, era ele quem demorava se arrumando. Está certo que dessa vez íamos a um casamento, mas ele não era a noiva.

Eu já estava jogando as cinzas no lixo quando ele apareceu, cabelos lambidos, ajeitando as abas do terno cinza.

— Café? — apontei o bule com o queixo. — Ainda está quente.

Todas as palavras esdrúxulas, como os sentimentos esdrúxulos, são naturalmente ridículas.

— Eu tomo na volta, ou vou ficar com os dentes amarelos, vou querer lavar a boca, e acabaremos nos atrasando. Vamos.

— E esse foi o poema "Cartas de amor", do admirável versejador luso Álvaro de Campos. Indiscutivelmente primoroso. Só aqui na Vozes d'Além Mar você escuta as novidades artísticas veiculadas em todos os pontos do mundo civilizado com a mesma rapidez com que elas chegam na capital nacional. Receberemos agora em nosso...

Calei o locutor girando o botão do rádio ao passar pela sala. Não era tão fácil, porém, desligar o fluxo de pensamentos.

A mente estacionou na outra carta queimada naquela manhã, uma do Quartel General. Ao contrário da última correspondência que eles tinham mandado, pedindo que fizéssemos um levantamento preciso do número de armas e gente com que poderíamos contar, dos possíveis refúgios e do que, em nossa opinião, faltava para atingir as condições materiais mínimas para o levante, essa era lacônica. A liderança convocara alguns colegas para uma reunião no Rio, no começo de novembro, para orientações e discussões de última hora.

Última hora, sim. A data aproximada do levante fora decidida. Deveria acontecer no final de dezembro, começo de janeiro, ali por volta das festas natalinas. Todo mundo sabe que o Brasil só volta a funcionar depois do Carnaval. A ideia era aproveitar o momento de lassidão.

Para nós, porém, relaxar estava vedado. Ainda havia tanto a fazer.

— Sim, eu aceito.

Acordei da divagação e olhei com um pouco de pena para o noivo, que não poderia aproveitar seus doces dias de recém-casado. Santa fora um dos convocados para a reunião. De se esperar, já que ele era o homem do Comitê Central.

— Eu vos declaro marido e mulher. Pode beijar a noiva.

Desviei os olhos dos noivos para o cenário, num impulso involuntário para lhes dar privacidade. Não havia decoração; todo o dinheiro arduamente poupado pelos nubentes fora entregue ao padre para pagar a cerimônia. Afinal de contas, ali era a igreja matriz, o preço do ofício devia ser mais elevado. Mas como Dona Letícia gostava de dizer, "se é pra casar, vamos fazer direito".

De onde eu estava, no lugar de madrinha, podia ver também os convidados. Eram bem poucos, quase na integralidade parentes de Letícia, e gente muito simples, vestindo suas melhores roupas – trajes domingueiros de qualidade infinitamente inferior aos dos senhores e senhorinhas "da sociedade". Toda a beleza que faltava em seu vestuário e na austeridade do templo pequeno e nu, porém, era suprida pela solenidade das expressões comovidas, em que se lia um instintivo respeito pelos marcos sagrados do ciclo da vida.

A roupa dos noivos já tinha um aspecto melhorzinho. Santa usava seu terno cinza, velho, mas de alfaiataria. O vestido da noiva, até as canelas e com babado na gola e nas manguinhas, era rosa chá – afinal, ela não podia mais usar branco. O rosto contornado pela toquinha e pelo véu de tule rosa, porém, não parecia dar a mínima para isso. A moça estava genuinamente feliz, e Santa – embora talvez fosse negar, se pegassem no pé dele – estava mais ainda.

Dias VermelhosWhere stories live. Discover now