Capítulo 70 - Nossa bandeira jamais será azul

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Ouviu-se um farfalhar quando ele sacou a arma do bolso do paletó.

— Esse maldito chão de taco. Meu salto escorregou — queixei-me, massageando a nuca. A porta de madeira golpeada por ela ainda vibrava.

Astrakhanov bufou. A próxima coisa que eu vi foi seu rosto a alguns centímetros, iluminado pela chama de um palito de fósforo.

— Pelo menos sabemos que não tem ninguém aqui — ele sussurrou, ao estender a mão para me ajudar a levantar. — Se houvesse, já teria descido com o berro que você deu.

Fiz uma careta para as costas dele, que se virara para examinar a parede em frente. Ele localizou a porta que levava ao salão principal no exato momento em que o fósforo se extinguia, queimando seus dedos. Entregou-me a caixinha às cegas e pediu para que eu acendesse outro, enquanto se curvava para a maçaneta.

Enquanto ele trabalhava, examinei brevemente o saguão. Era bem pequeno, continha apenas um porta guarda-chuvas, uma lixeira, e ganchos nas paredes, para pendurarem paletós e chapéus. Os ganchos, no entanto, estavam dispostos em duas longas filas nas paredes laterais, e os outros dois objetos ladeavam a entrada a distâncias milimetricamente simétricas. Passei os dedos no umbral da porta intermediária. Nem um grão de poeira.

Isso me deu um leve arrepio.

No salão social, a mesma ideia se repetia, em maiores dimensões. Um púlpito na frente, à direita de uma mesa de autoridades, e cadeiras dispostas em quatro quadrados, cortados por corredores de tamanhos iguais. Nos cantos, havia duas mesas e dois armários no extremo oposto. As decorações das paredes, aparentemente quadros, não dava para enxergar. No centro do aposento, entrevia-se um elaborado lustre, que contrastava com a austeridade geral da sala, e evidenciava a condição financeira do dono do prédio. Afinal, lustre é coisa que não se vê em casa de pobre.

Não caí na tentação de acendê-lo, porém. Nosso conjunto de petrechos não incluía um lampião a querosene à toa. Enquanto eu tratava de iluminar a sala, Astrakhanov pegou os cobertores e os percevejos e foi cobrir as duas venezianas do lado esquerdo do salão. O lado direito não tinha nenhuma, porque dava para dentro de casa. Eu ria sozinha, imaginando os desgostos que essa assimetria devia causar aos metódicos proprietários, quando um barulho às minhas costas nos sobressaltou.

Astrakhanov se agachou atrás de uma das mesas laterais, tirando novamente a arma do bolso, e eu corri com o lampião para debaixo da outra, tensa. Imaginava o que teria acontecido com Paiva e por que não ouvíramos luta. Os intrusos entraram na sala antes que eu tivesse tempo de cobrir o lampião com o vestido, e foi melhor assim, ou Santa e seu companheiro desconhecido talvez tivessem sido alvejados. Eu tinha esquecido que vinha mais gente. E, aparentemente, Santa também esquecera, pois levou uma mão ao peito e outra ao bolso ao nos ver levantar de repente.

— Eita! E olha que ele me falou que vocês estavam aqui — disse, sacudindo a cabeça em direção à rua.

Ele nos apresentou o jovem de cabelos encaracolados que o acompanhava como "Camarada Anselmo". Não me apeguei ao nome, porém, considerando que chamados por ele de Cristina e Agnaldo.

Daqui a pouco eu precisaria de um assistente só para administrar minhas identidades.

— O que vocês já fizeram? Estão aqui faz tempo?

— Acabamos de chegar, só preparamos a sala — respondi, depositando o lampião sobre o púlpito, que era o ponto mais alto, para a luz projetar um círculo maior.

— Muito bem — Santa aprovou, com um aceno de cabeça. — Se trabalharmos direitinho, dá para fazer tudo em uns quinze minutos e chispar antes que nos apanhem. Não acho que tenha muito risco, mas melhor prevenir do que remediar.

Dias VermelhosWhere stories live. Discover now