9. Regalias e treino começam

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NA MANHÃ SEGUINTE.

Eis um fato: minha realidade tinha mudado completa e tão rapidamente que minhas memórias estavam um turbilhão. Até o dia anterior, eu poderia estar vivendo um conto de fadas em que meu avô morria e depois de dois dias eu superaria isso e tudo ficaria bem, feliz para sempre.

Isso seria bem mais fácil de aceitar, mas só foi preciso uma madrugada agitada para eu me meter em uma quase-guerra e meu conto de fadas virar uma aventura que eu não sabia onde me levaria, mas que me enchia de dúvidas todas as vezes que eu tentava imaginar.

Pelo menos tempo eu tive de sobra para organizar meus pensamentos no quarto em que tinham me colocado. Pensei em vovô e em tudo que descobri sobre ele. Era surreal e difícil de aceitar, mas imaginar vovô sendo poderoso como eles tinham dito na noite passada era incrível – mesmo depois de morto ele ainda conseguia me orgulhar. Sem contar que ele tinha conseguido esconder isso tão bem e por tantos anos, que nunca ninguém desconfiou.

De qualquer forma, quando eu abri meus olhos de manhã, confirmei novamente que de fato nunca estive num sonho – fui dormir com essa esperança, mas tudo ainda estava lá: o castelo, as paredes de pedras grandes, a decoração e o ambiente arcaico, tudo me fazendo se sentir num filme fantástico. Meu quarto não era muito mobiliado, tinha uma cama de dossel com cortinas, um tapete de couro de urso, um guarda-roupas sem muito charme, uma cabeça de alce pendurada na parede ao lado da porta e um banheiro; fora isso, as paredes frias tornavam tudo solitário e maior, mas eu tinha a impressão de que deveria haver quartos mais bonitos naquele castelo, embora aquele já ajudasse bastante a reforçar minha sensação cinematográfica.

Entretanto, o que me acordou àquela manhã não foram os cantos dos pássaros, nem o sol do amanhecer com sua brisa fresca, mas certa movimentação de pessoas no quarto. Algumas mulheres usando vestidos brancos e tiaras com panos cobrindo os cabelos caminhavam de um lado para o outro segurando toalhas, baldes e jarras grandes. Alheia àquilo, sentei-me na cama e arrumei meus cabelos bagunçados, observando-as trabalhar. Eu não fazia ideia do que estavam fazendo ali, mas elas também não davam a mínima para mim.

– Com licença – eu chamei uma delas, que passava carregando um vaso com rosas.

– Bom dia, senhorita – ela me respondeu prontamente, sorrindo e colocando o jarro na mesinha ao lado da cama. Era uma mulher rechonchuda, de bochechas rosadas e dentes amarelados. Quando ela se aproximou, constatei sua aparência e foi impossível não comentar com alívio:

Ah, ufa! Que bom que vocês não são ratos ou gatos. Pensei que todos aqui eram assim.

O sorriso da mulher morreu e ela ficou séria, o que me fez perceber que eu tinha falado besteira. De forma compreensiva, mas visivelmente consternada, ela me explicou:

– Não fale isso, por favor, não seja tão rude, senhorita. Eles não eram assim, não eram até semanas atrás. É culpa de uma maldição. Meu marido nos abandonou por vergonha e humilhação. Não diga isso dessa forma de novo – repetiu.

E eu me senti culpada, mas fato era que eu estava sabendo daquilo pela primeira vez ali, porque, pensando bem, Dinter-Dim não me respondeu acerca disso noite passada.

– Desculpa, senhora, desculpa. Não era minha intenção insultar seu marido e os outros, eu não sabia. – E antes que ela se retirasse magoada, eu ainda perguntei, achando que parecer preocupada a faria me ver menos perversa: – Mas como isso aconteceu?

Ela parou e pensou um pouco, ponderando se deveria me dizer, mas respondeu como quem queria voltar logo ao trabalho:

– Há duas semanas uma comitiva de viajantes vindos de Mediév chegou até à Cidade-Forte. Traziam más notícias: um vilarejo e uma aldeias do clã MacSkull tinham sido atacados nas regiões à oeste das montanhas do Sol. Não havia ninguém por lá e ninguém sabia como tinha acontecido. Parecia inconcebível que um vilarejo e uma aldeia do clã MacSkull tivessem sido exterminados porque havia muitos homens lá e seria preciso um clã se levantar contra o outro, porque não há em Penina exércitos tão poderosos. Mesmo assim, os boatos correram tão rápidos quanto os trotes dos cavalos e não pararam por aí. As notícias que chegaram depois só assustaram mais ainda a todos, pois os chefes do clã não sabiam explicar e nem achar os perdidos. Então o rei montou tropas e partiu na tentativa de descobrir o que tinha acontecido por lá, contudo, quando eles voltaram, trouxeram consigo essa praga. – Ela pausou para respirar e até achei que pararia por ali, mas prosseguiu: – Meu marido disse que encontraram um vilarejo vazio e devastado e que ainda lá eles começaram a se transformar. Foi rápido e doloroso, ele disse, todos do exército foram malditos e se tornaram ratos e... e o rei em um enorme gato! Estão atribuindo tudo isso ao inimigo que vem tentando chegar ao Muro. Isso é tudo que sei, querida. Com licença.

Crônicas de Penina - Livro 1 - Os desenhos de Cornélio (COMPLETO)Onde histórias criam vida. Descubra agora