Capítulo 69 - A Noiva de Frankenstein

Start from the beginning
                                    

As paredes de alvenaria da casa silenciosa e às escuras viram-me percorrer os cômodos só de camisola e robe, pé ante pé, em busca de uma vela, meu ferro de passar, o resto de suco de uva do jantar e um vidrinho de iodo, apetrechos que carreguei para o meu quarto, trancando-me lá.

Cerrei a janela, apesar do calor, as cortinas, e deixei aceso apenas o abajur sobre a escrivaninha. Até respirar, eu o fazia o mais quietamente possível. Para todos os efeitos, estava dormindo, mas acho que nem uma caixa de pílulas calmantes me faria dormir naquela noite, neutralizando o efeito da excitante chance de desbravar aqueles documentos... e provar que eu estivera certa o tempo todo.

Hesitei um momento, sem saber por onde começar. Peguei primeiro a carta, mas havia muitos códigos a testar, sabe-se lá quanto tempo levaria. Apanhei, então, o cartãozinho. Hunf. Muito a cara de Astrakhanov mesmo, com seus elogios baratos e flertes por passatempo. Aposto que se vendessem desses na União Soviética, todas as alunas da ELI já teriam voltado para casa com um. Bem, isso não vinha ao caso agora — havia algo bem mais sério em jogo.

Espantei as distrações da mente e tateei o papelote com cuidado, em busca de alguma impressão em sutil relevo. Nada.

Acendi, então, a vela, jogando o fósforo que usara para isso no interior do pesado ferro de passar. Enquanto esperava os carvões se incendiarem, aproximei o cartãozinho da vela. Segurei-o o mais próximo possível da chama, queimando as pontas dos dedos, com o coração acelerado. O marrom uniforme que escureceu o papel pardo me desapontou um pouco — mas talvez fosse só falta de um contato mais direto.

Depositei o bilhete sobre uma coberta dobrada e pressionei o ferro quente pesada e insistentemente contra ele. O marrom não se alterou.

Bem, não era limão nem leite. Mas havia outras formas de se fazer tinta invisível. Amido, por exemplo. As letras azuis que eu esperava ver surgir como efeito do iodo, porém, também me deixaram na mão. Terminando de estragar meu pincel de maquiagem, besuntei-o com o suco de uva do jantar, uma porção que eu separara sem adoçar — sabe-se lá se o açúcar não cortava o efeito das substâncias da fruta.

O pincel ainda pingando no chão, esquecido em minha destra, contemplei com desalento o cartão queimado, lambuzado, e completamente vazio à minha frente. Descartado também o fermento Royal, esgotavam-se as técnicas de escrita invisível que eu conhecia, e uma hipótese em que eu ainda me recusava a acreditar ganhava contornos de verossimilhança.

Limpei minha bagunça antes de passar à carta, tentando com isso limpar também a bagunça da mente, livrar-me da estranha sensação de ter puxado uma barba verdadeira. Como no cinema ou no teatro, quando tentam desmascarar alguém, mas no fim a pessoa não estava disfarçada.

Certo: a barba resistira, mas eu ainda podia puxar o nariz.

"Estimado Sr. Stuart,

Espero que não me julgue indecorosa por tomar a liberdade de escrever-lhe. Deus sabe que este não é o padrão de meu proceder. Tanto assim que mal sei como verter em palavras o que desejaria aqui expressar. Não pense que basta um agrado para que eu..."

O rosário de pedidos para que ele não a considerasse uma mulher fácil ou atirada continuava ainda um tanto, introduzindo um agradecimento pela rosa presenteada, com mil melosidades que evidenciavam o interesse da remetente no destinatário.

Confesso que, enquanto lia, compreendi muito do agastamento de Astrakhanov por ter que ler minha correspondência com Pavel, durante o curto período cor-de-rosa de nossas relações, por assim dizer. Para terceiros, lenga-lenga romântico é mesmo maçante. Minha atenção, capturada pelas palavras "julgue", "liberdade", "padrão" e "proceder" no primeiro parágrafo, já fugia, ao fim da página e meia, para a lagartixa que estava oculta no canto da cortina, só com o rabo aparecendo. E dos bocejos eu perdera a conta. Talvez a estratégia para ocultar a verdadeira mensagem, caso a carta caísse em mãos erradas, fosse justamente adormecer o leitor.

Dias VermelhosWhere stories live. Discover now