Capítulo 68 - Tribunal do Caráter

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Quatro e Paiva levantaram um coro de "Parabéns" em minha homenagem logo que os pombinhos se sentaram à mesa. O canto foi recebido com uma careta da minha parte, mas corroborou o clima de reunião social sem segundas intenções, e fez dona Letícia relaxar e se abrir em sorrisos e em palavras.

Aproveitando a brecha na defesa, os camaradas, com uma eficiência digna da polícia de Getúlio – mas, felizmente, sem os mesmos métodos – extraíram de Dona Letícia toda a vida dela e de sua árvore genealógica. O material era singelo, na verdade: a moça vinha de uma longa linhagem de pescadores natalenses, com uns poucos transviados que tinham ido trabalhar nas salinas, ou em sapatarias, ou migrado para o Norte na corrida da borracha, como o pai de Tonho.

A própria Letícia era a moça mais prosaica que se pode imaginar: nível de instrução primário, trabalhava de costureira e lavadeira para fora, além do serviço doméstico, e ia à igreja nos feriados. Bom, antes, que agora estava vivendo em pecado com "Maranhão", e tinha vergonha de aparecer na missa.

— Sabe como é, a gente sabe que elas — a moça se referia às outras mulheres da Paróquia — falam pelas costas, mas na nossa presença e na frente do padre... deixa sem jeito.

— Pois você não tem do que se envergonhar – comentou a companheira de Epifânio, com voz raivosa e um rubor subindo-lhe pelo rosto claro — Pior são elas que se amarram aí com qualquer um de quem nem gostam, só por medo de ficar sozinha.

— São firulas, essas coisas — Epifânio acrescentou, acre. — Cerimônias supérfluas que a ideologia empurra na cabeça do povo. Na verdade, até me surpreende que...

Ele ia começando a censurar Santa pela "fraquejada" do casamento religioso mais uma vez; todos percebemos, e o nível de tensão na mesa subiu de imediato, porque Santa não era do tipo que aceitava placidamente intrometimentos. Então Zefinha, uma das pessoas de maior tato que eu já conheci na vida, redirecionou habilmente a conversa com uma observação conciliadora:

— O que Dona Lenila e Seu Epifânio querem dizer — ela falou, dando tapinhas por sobre a mesa na mão de Letícia, cujos olhos já estavam arregalados — é que só a benção do padre não segura um casal junto. Tem que ter força de vontade dos dois, amizade, respeito, paciência...

— ...fidelidade... — acrescentei, entredentes, lançando um olhar de soslaio para Astrakhanov. Por sorte, ninguém reparou.

— ...enfim, tem que cada um fazer sua parte, todo dia.

— E eu não sei? Já tem dia que dá vontade de largar as ceroulas do Maranhão tudo no rio e mandar ele lavar sozinho — desabafou a amasiada, rompendo o círculo em risadas, enquanto Santa escondia o rosto no copo de cerveja, avermelhando por sob o castanho da pele. — Mas a raiva dura pouco, e eu logo tenho de novo vontade de usar o véu — ela retificou, carinhosamente, afagando o braço dele.

— Falando em véu, a senhora já comprou um? — perguntou a mulher de Praxedes. — Porque eu tenho um que herdei da minha avó, e ia usar para mim, mas...

E a conversa descambou para itens de vestuário, tecidos, detalhes do menu e decoração. Os homens se retiraram para o quintal com as garrafas de cerveja restantes, enquanto as mulheres passavam à sala, levando o café. Fui com elas e me vi obrigada a inventar vários detalhes de meu casamento fictício para responder às perguntas com que me alvejavam.

Deixei-me levar pela fantasia e estava no meio de uma descrição da minha mal-humorada sogra Charlotte, uma inglesa seca com alergia a peônias e fixação por terriers, quando Zefinha me sinalizou que estava pronta para a operação retirada estratégica. Olhei por sobre o ombro e vi que os dois meninos dela, cansados da corrida e pesados da comida, dormiam a sono solto, escarrapachados no sofá.

Dias VermelhosWhere stories live. Discover now