Capítulo 68 - Tribunal do Caráter

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— Cheguei primeiro porque não tenho o que fazer da vida mesmo — anunciou o guarda civil Mário, emoldurado pela porta da cozinha. — Opa, desculpa, Zefinha — ele acrescentou, ao perceber o fora, enquanto a mulher girava os olhos e dava uma risada.

— Pois tenha um filho e não vai saber mais o que é isso — ela comentou, entre agastada e divertida, finalmente conseguindo tomar o porta-retratos. Endireitou-se. — Fazem a gente passar uma vergonha. Se comportavam direitinho, agora parece que pegaram confiança com a Dona Anita e não tem quem controle! Argh!

— Ei, vocês — Mário chamou as crianças e fez uma cara séria. — Querem passar uma noite no xilindró?

— Ahn? Não, não! — o pequeno Quatro respondeu, freando de súbito no meio de uma corrida, enquanto Zezinho começava a chorar e se agarrava à saia da mãe. — Mas não pode, a gente não fez crime nenhum!

— E tem crime pior que desobedecer a mãe, tem? — Mário ergueu uma sobrancelha. — É assim que os maus elementos começam a carreira! — abaixando-se para ficar no nível do olhar dos meninos, acrescentou, mais suave: — Esperem quietinhos lá na sala que depois eu ensino vocês a fazer uma mágica com um elástico, pode ser?

Compradas pela proposta, as crianças correram para a sala, e o guarda se endireitou, dirigindo-se a mim:

— Camarada Anita, é impressão minha ou a senhora parece mais jovem a cada dia que passa?

Larguei o bolo na mesa, e estreitei os olhos para o deboche, acompanhando-o na risada em seguida. Ele se adiantou e beijou as costas da minha mão, que ainda cheirava a cebola e chocolate. Estendeu-me um pacotinho de presente, e, enquanto eu o abria, para encontrar um lenço de borda rendada, Mário se aproximou sorrateiramente da mesa.

— Melhor não — avisou Astrakhanov, apoiado de braços cruzados no limiar, ao ver o convidado estender a mão em direção à torta. Atendendo ao alerta, Paiva deu as costas à mesa.

— Quantos anos, camarada Anita?

— Vinte e cinco.

— Tudo isso? — ele se fingiu horrorizado. — Sabe, ouvi dizer que quando o Comunismo for atingido, as mulheres não envelhecerão. O que acha, camarada Anita? Não seria uma conquista prodigiosa da humanidade?

— Seria, camarada. Mas eu já ficaria satisfeita se fizessem os homens ultrapassarem a idade mental de doze anos.

Zefinha escondeu uma risada no guardanapo, enquanto Astrakhanov saía para atender mais um chamado no portão, e Paiva, desarmado pela minha réplica, voltava-se para a mesa outra vez.

— E aniversário, teremos no Comunismo? Ouvi dizer que, na União Soviética, Natal e Ano Novo eles cancelaram. Se cancelarem o aniversário também, eu pulo fora. Não posso passar sem ter um pretexto para comer.

— No Comunismo teremos o que comer — veio o comentário ríspido da porta. — Prioridades.

Era Epifânio Guilhermino que chegava com sua companheira, Leonila, uma moça bonita, porém arisca. Os dois faziam um par carrancudo, e eu só os chamara porque, em caso de nosso pequeno julgamento terminar em veredito negativo, Epifânio seria o único com coragem de anunciá-lo a Santa.

Logo mais apareceram também Praxedes e esposa, e o carcereiro Lauro Lago, presenças importantes, já que ambos eram da diretoria estadual. Quando uma parte da comida já estava beliscada, e a cerveja de Quatro começava a rodar a mesa na frente do meu nariz torcido, Santa e a examinanda finalmente chegaram.

A partir do momento em que Dona Letícia se juntou a nós, a palavra "camarada" foi banida do vocabulário, e quem esquecia dessa cautela levava um beliscão disfarçado por baixo da mesa.

Dias VermelhosWhere stories live. Discover now