Capítulo 67 - Nada elementar

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Bem, eu iria ao fundo disso.

Coloquei Astrakhanov sob observação. Ele permaneceu o fim de semana inteiro em casa, ausentando-se apenas junto comigo, para uma missão. Não saiu, na verdade, sequer do meu pé: ajudou-me até a trabalhar no jardim. "O que a culpa não faz", pensei, estreitando acusadoramente os olhos para os dedos longos fincados na terra. A menção à partida de Silo não despertara nenhuma reação nele. Um autocontrole que eu nunca cessaria de invejar. Talvez se eu mencionasse a visita de Silo, e a hora dela, conseguisse arrancar um estremecimento, mas não queria que ele ligasse o alerta por enquanto. "Deixa estar, deixa estar que uma hora você vai fazer de novo", pensei, arrancando as ervas daninhas de um puxão, com a força do rancor. "E aí eu te pego".

Assim foi. Na terça-feira, ele deu uma desculpa para não almoçar em casa. Certa de que era mentira, concordei sem prestar muita atenção ao conteúdo da ladainha, já me programando para a investigação. Quando faltava meia hora para o horário de almoço dos ferroviários, parti para os arredores da firma, e esperei saírem. Meu falso marido se destacava no grupo que deixou o estabelecimento ao soar do sino, com sua cabeça loura e aparentemente distraída visível acima das demais. Para onde iria hoje? Encontraria, talvez, outro contato com mais cara de agente inimigo?

Deixando que tomasse uma dianteira segura — perdê-lo de vista não era um risco — eu o segui até o centro. Ele teve o cuidado de não passar perto da nossa casa, enveredando por becos e quebradas vazias onde tive dificuldades para me ocultar. O destino se revelou o mesmo da outra vez, e, surpreendida apenas em parte, assisti cena quase idêntica à distância.

Então a espiã era aquela moça mesmo, e os encontros ocorriam sempre no mesmo lugar. Talvez fosse precipitação deduzir isso de apenas dois encontros, mas era a melhor pista que eu tinha. Cheguei a pasmar um pouco com a imprudência de Astrakhanov em resolver aprontar bem naquele ponto central e visível da cidade, onde, ademais, ele sabia que eu contava com um par de olhos extra, ao qual não hesitaria em recorrer.

Três semanas se passaram, com quatro ausências de Astrakhanov nesse período, todas sob diferentes desculpas, que eu aceitava sem discussão, fingindo não notar um titubeio aqui, um tremor ali, um olhar desviado acolá. Vê-lo subestimar minha inteligência daquela forma era um tanto irritante e humilhante. A vontade era gritar na cara dele, agarrar as abas do seu terno e sacudi-lo com toda a força da minha frustração. E olha que nem tínhamos ligação pessoal – me ofendia a afronta ao Comunismo. Senti muita pena das mulheres traídas, que preferiam fingir demência e engolirem o sofrimento sozinhas a confrontar o marido, ver o casamento desmanchado e ainda levar a pecha de não terem conseguido segurar seu homem.

Mas, ao contrário da delas, minha paciência não precisava ser eterna. Tinha data de validade.

Na quinta ausência, uma quinta-feira, segui-o novamente, e a cena se repetiu. Quando o tenente correu para o trabalho, tomei a rua da qual ele acabara de se ausentar e segui em direção à sede da administração municipal, ultrapassando o prédio amarelinho, sóbrio e sem campanário da Igreja Presbiteriana. Estreitei olhos suspeitosos para o Atheneu imponente na calçada em frente, erguido alguns metros acima da rua. Contornei a Prefeitura azul e branca, virando com ela a esquina e seguindo na mesma calçada até o Cinema Royal, pouco adiante, que ocupava a outra metade da quadra.

As pedras pintadas de azul Royal da fachada rebrilhavam ao sol do meio do dia, tornando o prédio facilmente identificável até para quem não conhecia de cor sua localização. O mesmo sol obrigava meu pequeno aliado a se abrigar em um dos muitos arcos de entrada.

— Tonho!

A criança debruçada sobre a caixa de engraxate ergueu sua cabeça de densos cabelos negros, e buscou-me com uma expressão interrogativa no rosto trigueiro e cavado. Um sinal de reconhecimento perpassou-lhe pelos olhos amendoados enquanto ele me cumprimentava com um sóbrio aceno de cabeça.

Dias VermelhosWhere stories live. Discover now