INTOLERÂNCIA

58 18 37
                                    

"...Apenas tentei enxergar
na escuridão
Apenas tentei fazer
isso dar certo
Para sentir o medo
antes de você estar aqui..."

-Close To Me-
THE CURE


Você demorou por demais... Até pensei que eu estaria só em mais essa colheita.

Felizmente você chegou num momento crucial para o Destino.

Veja ali, o saco de ossos!

Há horas está admirando o próprio reflexo; os olhos amarelados, a pele quase albina. As costelas marcando a pele e as veias tão azuis quanto uma vítima de asfixia.

Veja como Patrício afunda a mão no pote de gel e aplica o produto sobre o cabelo aloirado até grudá-lo ao crânio.

É a sexta vez que esse merda faz isso.

Percebe o que tenho que suportar?

Minutos atrás Patrício pôs a calça jeans, calçou o par de botas de couro, colocou o cinto com a fivela dourada herdado do avô e vestiu a camiseta dos Katalisadores do Kaos Kortante.

A jaqueta que logo veio por cima fechando o conjunto possui uma caveira mordendo uma suástica, o emblema de seus companheiros. Tá vendo... Ali ó... Isso.

Olha como ele lambe a própria imagem antes de sair para mais uma caçada. Asqueroso!

Percebeu que ele pegou o soco inglês de dentro da gaveta, ao lado do pacote de maconha? Viu o tamanho daquele pênis de borracha, entre as cuecas dele? É muita ironia vê-lo sair pra caçar gays.

O sangue dele é morno e não gelado como ele imagina... Nem é azul como o Mestre dele o induziu a pensar.

Patrício é apenas mais um vermezinho com um ego do tamanho do mundo e um cérebro menor que o caroço de uma azeitona.

Consegue ver? A tolice escorrendo pelas costas do loirinho vadio?

Eu sim.

Conheço o puto desde o momento que o pai, um idólatra do velho Adolf, estuprou a sobrinha.

Sim, fui eu quem o recebeu ao sair do útero da garota.

Eu quem o deixei órfão de mãe e fui também eu quem disse toda a verdade sobre Os Mundos.

Por isso os humanos choram ao nascer, sabe?

No momento em que saem da proteção uterina, meus lábios frios beijam-nos na testa ainda com restos da placenta e lhes sussurro quando e como irão morrer.

Confesso que adoro essa função.

Ainda mais quando se trata de vermes...

Está vendo ali? Logo adiante, entre as árvores da praça...? Viu?
Aqueles travestis são os alvos de Patrício, ele precisa ascender na Seita e pra isso deve esfaquear um e desmembrar o corpo do outro depois que sodomizá-lo. É o rito de passagem da Katalisadores do Kaos Kortante.

Pedi que você viesse porque quero lhe mostrar como ceifar é algo interessante.

Prometo que lhe devolvo ao Purgatório assim que possível. Sei que adora esfolar aquelas almas demôn...

Olha lá!

Os travestis.

Distraídos como duas gazelas comendo grama.

A minha foice está esquentando...

Patrício deveria esperar pelo Mestre, mas o orgulho e a prepotência o impulsionam para um ataque precoce.

Eu sei o que vai acontecer, mas adoro narrar com um tom de surpresa e ansiedade. Ainda mais quando tenho platéia... Apesar de você não falar muito...

Os dois travestis o avistaram... Mas note que permanecem parados... Fingem que não o viram.

Daqui consigo sentir o coração deles galopar no peito; um deles sente uma ereção involuntária e tenta afastar da mente a ansiedade.

No céu a lua brilha como um olho imerso em secreção e às vezes algumas nuvens ousam camuflar sua luz fantasma. A brisa congelante da mata desce e toca o chão onde grilos envenenam uma canção estridente para embalar o ataque.

E nisso o puto loiro avança. Acompanha lá os movimentos dele... Isso, logo ali por trás... É!

Os travestis estão se beijando, conversando ou seja lá o que a mente preguiçosa do verme homofóbico lhe induz a pensar.

Patrício infla os pulmões e se espreme por entre as àrvores. De onde está agora já pode ver a forma de seus alvos. Dois seres altos, pescoços finos e ombros largos. Um deles sorri e posso apostar minha foice que Patrício quase jurou ter visto duas presas despontarem por entre seus lábios finos pintados de batom.

O garoto apertou o soco inglês e mesmo com todas as células de seu corpo avisando pra desistir do ataque feroz saltou.

Patrício caiu com o soco acertando o chão. Um dos dedos soltou um estalo seco e o pulso dobrou como um galho ressecado. Que som delicioso.

O puto gritou.

Olhou para o céu com os olhos marejados e viu o par de vultos que o cercavam. Duas bolotas incandescentes chamuscam o ar e enfeitam os rostos diabólicos que o assombram.

Patrício jogou o corpo pro lado e ficou de pé aos trancos.

Xinga, cospe e chuta. E então junta coragem e... Corre!

Tropeça.

Ao olhar para trás vê os corpos estalar, os músculos rangerem, pêlos brotando na carne, os dentes virando presas e os pés tornando-se patas. Os monstros lupinos se livrando da prisão de carne que os camuflava.

Havia algo de errado naquilo e Patrício até imaginou ser algum efeito colateral da maconha que fumava antes dos ataques da K K K.

Então ele ouviu o uivar daqueles vultos antes tão frágeis quanto animais indefesos.

Ele correu ainda mais.

Gritou.

Olhou para o céu pela última vez e só então percebeu que era noite de Lua Cheia. As nuvens eram agora simples farelos atravessadas pela luz frágil.

Patrício tentou ver por cima do ombro, mas o mundo virou um carrossel desgovernado; o céu veio a baixo e o chão foi para a direita, depois esquerda até que tudo se tornou algo desconexo.

Os olhos giraram dentro das órbitas e fotografaram algo que parecia impossível: primeiro o emblema da K K K na jaqueta de couro reluzindo sangue, depois o corpo decapitado de alguém com um soco inglês imerso num punho quebrado sendo estraçalhado por coisas semelhantes a lobos.

Patrício não entendeu.

Mas eu sim, estou acostumado com essas coisas.

Caronte... Acho que você já viu o suficiente. Que tal voltarmos? Lhe deixarei onde o encontrei. Desculpe a narrativa, às vezes me empolgo com sangue.

TOTAL DE PALAVRAS: 995

TABELA: VERÃO

PALAVRA/TEMA: PRISÃO

SOTURNOOnde as histórias ganham vida. Descobre agora