SEDE

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"...Olá escuridão
minha velha amiga
Eu vim para conversar com você novamente
Por causa de uma visão que se aproxima suavemente
Deixou suas sementes enquanto eu estava dormindo
E a visão que foi plantada em minha mente
Ainda permanece
Entre o som do silêncio..."

-The Sound of Silence-
DISTURBED

Toda vez que Cleonice precisa ir ao quintal, o medo esfaqueia o coração. As mãos tremem, os olhos lacrimejam e a boca fica seca como o deserto. Nesse exato instante ela está bem ali, de pé na cozinha. Carrega na mão direita um balde de alumínio e a outra mão repousa sobre o pescoço; de vez em quando as pontas dos dedos medem o compasso do coração.

Os olhos vidrados atravessam a rótula da janela e perfuram a escuridão da madrugada. Buscam o inimigo que habita os fundos da casa.

Os pulmões arquejam o ar quente da cozinha e o forno com o bolo de cenoura, adocica o ambiente amargo.

Cleonice suspira e a testa gorgoleja suor.

Alcança a maçaneta. Gira. Abre a porta com cuidado, como se do outro lado um animal faminto a espreitasse. A brisa da noite atinge o rosto de forma suave, mas tão fria quanto a carne de um cadáver.
A tensão consome a viúva há dias.

Lá no fundo do terreno as folhas das árvores balançam numa cadência sutil. Alguns pirilampos permeiam a escuridão, os cavalos relincham nas cocheiras e alguns suínos perambulam no chiqueiro.

O que atrai o olhar aflito da cozinheira permanece oculto num vulto fantasmagórico. As pedras cobertas por musgo, a roldana enferrujada pairando sobre ele e a audácia de ainda existir ali a faz entrar em desespero.

O poço.

Cleonice quase sufocou quando o viu depois do que aconteceu com o marido. Teve a leve impressão de vê-lo se mover, chegar mais próximo da casa com o passar dos dias. Surgindo sempre à noite. Mais largo, mais... Vivo.

Cleonice solta uma gargalhada. Um sorriso histérico, sem sabor.
A mulher respira fundo. Contempla o forno; o bolo de cenoura assando, quase pronto. Olha para a pia e vê a torneira quebrada, o filtro de barro sem água. A sede se fazendo presente, se juntando ao pavor.

A torneira no quintal vomitando o líquido incolor tão precioso, a mangueira furada molhando a plantação de alface. Se premeditasse essa situação teria ido à casa de Dona Alcides, mas agora percorrer três quilômetros até a casa da Mãe de Santo não parecia boa ideia. Ainda mais a noite.

Ao longe o brilho afogueado das estrelas lhe deu alguma segurança perante as trevas que banhavam parte do quintal. Ou talvez o fato de a sede evoluir para dores estomacais com o ardor insuportável na garganta a tenha convencido. O fato é que Cleonice armou-se com um rosário, atravessou a varanda e desceu os degraus até o quintal. O balde mantido rente à perna e a mão sufocando a alça de plástico.

O retorno do poço é algo inconcebível para Cleonice. A existência dele fere o que conhece como a vida real, já que dias depois da morte de Donato o havia destruído. As paredes foram demolidas com uma das dinamites que o esposo costumava usar no garimpo.

Ela sabe que a explosão foi real. A poeira que inalou depois do estrondo, as pedras que voaram por todos os lados, inclusive matando o vira-latas do casal. O cheiro da água lodosa lambida pelo fogo e o buraco no telhado feito quando o balde ainda em chamas caiu sobre ele.

Como explicar tudo aquilo então? O que dizer da sensação angustiante de que o maldito rasteja em direção a casa ainda inteiro, com aquele fedor horrível escapando das entranhas?

Cleonice se moveu na diagonal desde que abandonou a segurança da varanda. O poço a observou durante todo o percurso, mas não a impediu de chegar à torneira. A viúva passou pela plantação de alfaces e colocou o balde sob a fluidez do líquido.

O vulto maldito estava lá, mas o que poderia fazer de tão maligno? "Enraizado ficará, como o fantasma que é!", pensou.

A água transbordou e Cleonice agachou-se sem tirar os olhos do inimigo de pedra. Tateou em busca da alça do recipiente e empapou a mão em algo viscoso. Naquele instante um gatilho ativou o reflexo de levar a mão diante dos olhos e o que nasceu depois foi o grito mais úmido e áspero que poderia produzir.

Cleonice recuou em desespero, segurando o rosário contra o peito. A mulher só se deu conta do que fazia quando sentiu o fedor de lodo invadindo as narinas; sentiu o gosto de peixe molhar a língua e a umidade lamber o quadril sob o vestido. As pernas esbarraram no musgo e com o cotovelo sentiu a rugosidade das pedras roçando na pele.

A mão ensanguentada apalpou a borda do poço e só então a viúva ousou virar-se.

Lá estava ele, o poço. Gélido como a morte e tão real quanto a água ensebada dentro dele.

Cleonice tentou mover-se, recuar para longe do inimigo mortal, mas antes que o fizesse ouviu uma palavra ser içada pelo hálito quente e nauseante do poço.

Os pelos do corpo arrepiaram, o coração suspendeu os batimentos por míseros segundos e a onda de pavor inundou o ar.

Cleonice tentou afastar as várias possibilidades que surgiam, mas a curiosidade venceu.

A mulher se aproximou da borda, tocou a frieza das pedras e olhou dentro do abismo.

A viúva prendeu a respiração e aguardou.

Pôde ouvir o pulsar do coração em alto e bom som. Sentir o sangue escorrendo pelas veias. O pouco de saliva que restava deixou descer estuprando a glote.

O rosário apertado contra a palma da mão agia como se algum tipo de extrato da salvação pudesse socorrê-la. Os olhos mirando a solidez da escuridão lá dentro, não viram sequer o reflexo das estrelas na água.

Cleonice virou o rosto na direção do balde e viu o sangue sendo expulso em torrentes infindáveis da torneira. Olhou para a varanda e sentiu saudades da vida que tinha.

Arrependimentos também lhe afogaram a mente. Mas o horror, esse se fez presente quando mais uma vez ouviu a voz subir por aquelas paredes de limo.

O hálito regurgitado do poço invadiu as narinas da viúva e a fizeram quase desmaiar. Cambaleou e segurou-se na borda de pedra.

O som da voz tornou a subir e desta vez veio mais audível, mesmo sob golfadas e grunhidos.

O rosário começou a ser usado; as palmas das mãos unidas exalando a fé da viúva. Porém...

A oração que Cleonice iniciou não pôde ser finalizada.

A voz que emergia do poço agora vinha por trás da mulher. O hálito putrefato cortou o ar, queimou os pelos da nuca e chamuscou a barra do vestido.
Cleonice virou-se de súbito, os olhos arregalados.

Viu Donato. Em chamas.

A pele da face desprendendo, esfarelando como papel de parede antigo. Os olhos, duas lanternas fumegantes, se liquefazendo junto com as pálpebras e bolhas estourando como fogos de artifício sob os trapos da camisa. Os lábios ressecados, rachando-se num sorriso escroto e os ossos estalando, pareciam galhos secos.

A voz da viúva negra engatou na garganta e os pulmões fraquejaram assim que o fedor de carne queimada se uniu aos outros odores.

Donato abriu o que restou da boca; os ruídos dos ossos carbonizados ecoando junto com o crepitar da carne em combustão, os ligamentos tostados fragmentando-se assim como todo o resto.

O morto caminhou com os braços estendidos, as mãos apalpando o ar e com a mesma voz dilacerante de antes, rosnou o nome de sua assassina uma vez mais.

O casal se acendeu como um foguete e sob os lamentos de Cleonice caíram dentro do poço. Iniciaram a longa descida ao Purgatório.

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TABELA: VERÃO

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