A VITRINE DO DESEJO

99 21 60
                                    


"...Perdido numa selvageria romana de dor
E todas as crianças estão loucas
Todas as crianças estão loucas
Esperando a chuva de verão, sim há perigo na periferia da cidade..."

-The End-
THE DOORS


Aquela era a quarta vez que passava diante da loja. Isso se deixarmos de fora os últimos três meses. Era algo inevitável, mais forte do que a fome, solidão ou a vergonha por estar ali parada em seus devaneios.

Por diversas vezes beijou a vitrine. Alisava a imagem como se a pudesse tocar; sentir a textura do tecido, a seda das lantejoulas ou o sabor metálico dos botões cromados que adornavam a peça de luxo. Porém, nunca o tocou.

Não até aquela noite.

O céu de São Luís estampava a segunda lua cheia do ano e as ruas suspiravam solidão. Ludmila caminhava decidida; os olhos escovando cada canto escuro em busca de alguma testemunha. O corpo franzino tremia sob qualquer ruído vindo dos becos escuros ou buzinas gritando ao longe. O medo a acompanhou durante toda a vida, exceto na jornada em questão. Ele ficou oculto, suprimido pelo imenso desejo de ter aquilo pra si.

O ar frio lambia os braços nus da heroína das ruas. O asfalto manchava o solado dos pés com a borra acumulada durante o dia agitado do Centro Comercial e os cabelos empapados de sujeira resistiam às investidas da brisa da madrugada mantendo-se firmes e desgrenhados.

A mão carcomida por ferimentos, a mesma que se estendia para pedir, ostentava o passaporte para a felicidade. O objeto pesado, retangular e que a garota sentia dificuldade em pronunciar o nome foi encontrado um quarteirão antes da Loja Mon Boutique. Ludmila o recolheu quando este descansava nas entranhas de uma calçada tão suja quanto os trapos que tentavam cobrir seu corpo.

Já próxima da loja o coração saltitava quase não cabendo dentro do peito. A mão esquerda, com unhas pequenas demais para roer, Ludmila alojou na boca. Já a mão direita, se concentrou em apertar até os nós dos dedos ficarem roxos e as falanges estalarem secas.

Ludmila então chegou.

O rosto salpicado de sardas refletia na vitrine. Os olhos brilhavam de ansiedade. O letreiro em néon desligado, mas o objeto de desejo onde sempre esteve. Do outro lado ele emanava beleza enquanto aguardava Ludmila, ansioso pra ser possuído.

E ela foi ao seu encontro.

Esticou a perna esquerda para frente, o pé deslizando até alcançar a posição adequada.

A outra perna recuou e o pé direito se enfincou num ângulo perfeito, formando uma linha reta com o outro.

Estendeu a mão esquerda com o indicador em riste. Olhou para os lados, respirou fundo, conferiu até três e como se competisse nas olímpiadas lançou o peso de sua mão para frente.

Usou o reflexo da lua como alvo e acertou em cheio.

O beijo entre os dois, o paralelepípedo e a vidraça, ressoou em estilhaços.

A quietude do lugar foi morta por uma menina de doze anos, tranquila e certa de seu objetivo. Avançou como que hipnotizada enquanto lá na Central de Vigilância Privada os agentes da noite se preparavam para a Terceira Guerra Mundial.

A calçada da Mon Boutique coberta por diamantes fajutos que brilhavam sob a luz lunar era uma bagunça só. Entre os manequins havia um em especial dormindo sobre os estilhaços de vidro. O ser de fibra e articulações rígidas jazia nu e violado. Na face congelada e isenta de emoções a marca de um pé ensanguentado e no peito, o paralelepípedo enterrado com fúria.

Em nenhum momento Ludmila sentiu dor ou arrependimento. Culpa era algo que também não fazia parte de seu vocabulário. Não se importou com as consequências do pedido de socorro feito pelo alarme da loja ou se preocupou com o alvoroço das viaturas e suas luzes bruxuleantes.

Nada foi capaz de ousar roubar a imensa alegria que ocupava o coração amargo.

Não posso afirmar sem sombra de dúvidas, mas acredito que a sonhadora nem ao menos chegou a perceber o vigilante Janílson, que estreava na equipe naquela noite, descer atirando como um lunático.

Acompanhei Ludmila desde que nasceu, mas naquela noite há treze anos, nada pude fazer além de testemunhar as balas rasgarem seus sonhos e penetrarem em sua carne.  O calibre trinta e oito destroçou músculos e devorou a alma infantil tão molestada pela sociedade.

Agora minha existência se resume a vê-la entre os intervalos de minha coleta de almas, dançando e sangrando com o vestido colado ao corpo apodrecido. Por toda eternidade.

TOTAL DE PALAVRAS: 759

TABELA: VERÃO

PALAVRA/TEMA: VESTIDO

SOTURNOOnde as histórias ganham vida. Descobre agora