Onze

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A estrada estava vazia. O vento, estava frio, o dia já tinha amanhecido. Deixei a cabeça pender para trás enquanto acelerava gradualmente. O ponteiro do velocímetro tremia, oscilando um ou dois pontos, mas acima dos 150 km/h. Parecia que não havia mais nada além de mim, a estrada e os prédios. Eles contornavam o caminho pelas laterais, se fundiam num borrão só, passando rapidamente pela janela. A sensação era boa, eu estava indo cada vez mais rápido, e as outras três motos ficavam cada vez mais para trás. Parando para analisar, ir á Sant George não tinha sido de todo ruim. Saímos do posto com um para choque novo no sedan, uniformes novos, alguns armamentos extras (segundo os soldados do posto, o caminho ficaria mais perigoso dali para frente, mais populado, mais desafiador) e talvez mais suprimentos do que precisaríamos. Até mesmo Cloud tinha refeito sua trança, e agora estava alinhada e perfeita como quando partimos para esta viagem. Estávamos prontos outra vez. E eu até mesmo tinha recuperado parte da minha rebeldia inicial. A morte de Ivan me fez olhar para trás, e perceber como as coisas pareciam tão diferentes, em tão pouco tempo. Principalmente meus companheiros de viagem. Me pergunto quando eu me esqueci que era prisioneira, já que meu comportamento quase dizia que eu estava indo por vontade própria. O que está acontecendo?
Depois de um tempo, quanto mais andava, melhor podia observar a estrutura metálica e impotente de uma ponte, e isso foi a única coisa que me obrigou a diminuir em quilômetros. Uns dez metros antes da entrada, já se formava uma fila enorme de carros parados. Estavam tão próximos e amontoados que era claro que eles tinham batido uns nos outros, causando um acidente enorme. Todos pararam e deixaram seus veículos. Logo senti um cheiro forte que não sabia distinguir. Parecia...fuligem, gasolina e algo mais que não sabia o que era.-O que será que aconteceu aqui?- Arya perguntou, ficando na ponta dos pés para tentar ver através dos carros.-Com certeza foi feio- respondeu Parker -Só nos resta torcer para que não tenha danificado a passagem da ponte. Cloud subiu em cima de uma lixeira e começou a se impulsionar para subir em cima de um carro. Escutei um barulho baixo, vindo da minha direita. Era levemente estático, parecia arranhado e grave. Decidi seguir o som e comecei a caminhar lentamente para a direita. Os carros estavam muito próximos, dificultando bastante a minha passagem por entre eles. Haviam muitos vidros quebrados, e líquidos coloridos no chão. Lixo, roupas, bolsas, sacos com diversas coisas... para ser completamente sincera o cenário era bastante assustador. Conforme me aproximava, consegui distinguir o som: Rádio. A transmissão entrecortada chegava a emitir trechos de músicas as vezes, mas no geral era apenas estática. Porém, entre o labirinto de carros no qual eu me encontrava, era difícil encontrar o rádio em si.-Pessoal, uma parte da ponte desabou- Cloud avisou, de cima do esportivo vermelho. Quando encontrei o chevrolet velho de onde vinha o som, encontrei também uma enorme poça de sangue, que vinha escorrendo da porta do motorista. Pisei na ponta da poça e, arrastando minha bota para o lado constatei que o sangue ainda estava líquido, e parecia relativamente recente. Me inclinando, encontrei o doador: Um senhor com a cabeça repleta de fios brancos estava debruçado sobre o volante, imóvel e com a pele azulada. Sozinho no carro.-A bateria não duraria mais do que dez horas, com o rádio ligado o tempo todo. Kyah de repente estava do meu lado, me assustando. Não tinha percebido que ele também tinha ouvido o rádio. De qualquer forma não parecia estar falando especificamente comigo. -Isso tudo aqui é bem recente- Parker constatou, analisando todos os elementos- Nós podemos ter sobreviventes! Temos que procurar. Cloud deu um salto e desceu do esportivo. Parecia bastante animada com a ideia de haver um.-O carro não vai passar, e a ponte está bloqueada. A metade de lá está dentro do limite dos campos de conflito, por causa da expansão que o soldado disse no posto- Ela explicou, gesticulando- Nós podemos até vasculhar uma parte, mas não vai dar pra chegar até o final, é muito arriscado.-Vamos logo- Parker disse- Vamos nos separar. Se precisarem de ajuda, chamem! Ele parecia muito ansioso. Nem ao menos terminou sua frase, e já estava se afastando. Eu segui seu exemplo e dei as costas á Kyah, propositalmente. Ele tinha recebido uma joelheira no posto da tropa, e agora estava novo em folha. Mas eu ainda estava muito irritada com ele, e talvez até um pouco magoada, e talvez pensasse que seria bom dar outro motivo para ele mancar. E essa raiva eu pretendia usar para vasculhar as centenas de carros que viriam pela frente. Exatamente, tinha decido á uns dez segundos que ajudaria, mesmo após resgatar minha consciência rebelde. Prendi o cabeço e comecei a andar, me espremendo entre os carros. Quanto mais eu avançava, maior era número de corpos que eu encontrava neles. Algumas vezes, eram famílias inteiras dentro dos carros, mas, felizmente, algumas vezes, os carros estavam vazios, indicando que os passageiros sobreviveram e conseguiram sair dali. Tentava imaginar o motivo para que todos tenham avançado com tanta ferocidade em direção ao outro lado, batendo nos outros carros e arriscando suas vidas. Talvez a cidade tenha sido invadida. Era uma alternativa plausível, já que agora os campos estavam mais próximos do que nunca, e uma falha no lado de cá seria o suficiente. Com toda certeza, a pior parte era verificar o pulso. Nos corpos que eu não tinha certeza, eu me sentia obrigada a pousar os dedos no pescoço, logo abaixo do queixo, para poder me certificar. Bom, pensando bem, a única coisa pior do que isso era olhar para trás, ver o quanto já tinha avançando, sem ter encontrado nem um único sobrevivente.-Pessoal!- Gritou Parker- Rápido! Aqui! Caminhei entre os carros para conferir porque ela chamava. Estávamos no lado direito da pista, e o lado esquerdo estava com problemas bem sérios. Uma parte tinha se partido, desvencilhado do restante da ponte, e pendia em direção á água, erguendo sua outra extremidade. Uma confusão dos cabos de força que ajudavam a sustentar a ponte seguravam alguns carros ao longo da rampa de quase 90°, e bem no topo, havia um utilitário branco, esmagado á um pilar, junto com os restos do que parecia ser um outro veículo. O utilitário estava em pedaços, com parte da frente arrancada e pendendo da lateral. Era difícil imaginar como ele acabou ali em cima, á uns onze metros do chão, mas mais difícil do que isso, era saber como havia uma garotinha lá em cima, presa ao banco infantil para carros, com o cinto de três pontas a impedindo de despencar devido á inclinação. Ela tinha um pequeno arranhão na bochecha, mas fora isso parecia estar intacta.-Ela ainda está respirando- Arya comentou, apontando com certa urgência- Deve estar inconsciente. Ela estava certa. Eventualmente, via-se como a cabeça dela se movimentava minimamente.-Como vamos tirar ela dali?- Parker perguntou, extremamente enérgico. Todos olharam ao redor, procurando por algo que ajudasse.-Se conseguirmos subir por aquele pilar- Cloud sugeriu, balançando o braço com o indicador apontando qualquer coisa que eu não podia ver- Acho que dá pra atravessar até a pista. Claro, vamos precisar praticamente escalá-lo, mas eu não acho que ele vá se partir, não foi construído para isso ser possível. Inclinei-me e imaginei que ela estivesse falando do pilar direito da ponte que despencou para a esquerda, e estava caído perto do carro, só talvez um metro a baixo. Talvez desse mesmo para alcançar o utilitário dali, mas, era como ela tinha dito, era preciso uma escalada difícil.-A subida é muito íngreme- Parker disse, balançando a cabeça em negação.-Vocês ouviram isso?- Kyah perguntou, parado de costas para nós, voltado para a direção de onde viemos. Ele parecia realmente preocupado, ou sei lá, mas não devia ser nada. De qualquer forma, eu disse:
-Não custa tentar. Comecei a andar, e acabei ficando na frente do grupo, e eu fui a primeira a chegar. De repente, eu estava empolgada em salvar a garotinha, e torcendo fervorosamente para que conseguíssemos. Quer dizer, deposi de olhar para tantas pessoas, e conviver com tantas pessoas, e matar pessoas, e acordar no meio de pessoas mortas...eu queria, eu precisava de um pouco de vida. Realmente não era uma tarefa fácil encontrá-la, mas eu agora podia vê-la, em breve, poderia tocá-la. Isso é incrível. É o tipo de coisa que tem o poder de confortar, mesmo que pouco.
A coluna tinha mais ou menos um palmo e meio de largura. O suficiente para um passo confortável, não para dois pés juntos. Eu diria que a inclinação era de uns 50°. Não perdi tempo e subi nela, apoiando as mãos para guiarem o caminho que meus pés fariam. Mais ou menos um metro atrás de mim, Parker começou a se preparar para subir.-Acho que não é uma boa ideia- Kyah insistiu, pegando a sua arma e verificando o cartucho- eu ouvi outra vez.-O que você ouviu?- Cloud perguntou. Ela uma ótima pergunta, afinal eu também não tinha ouvido nada até agora. Enquanto eles conversavam, respirei fundo e fiquei de pé. Esticando os braços para que auxiliassem no meu equilíbrio, fiquei parada um pouco, esperando juntar confiante o suficiente para conseguir caminhar. Mantinha o olhar fixo na coluna.-Passos- ele respondeu. Neste exato momento, eu já estava significativamente acima do chão, e congelei. Não tinha avistado uma pessoa que não estivesse morta, além da garotinha, e agora haviam pessoas caminhando por aí, atrás de nós, que já é um salto bem grande em relação á pelo menos respirar. Eu estava de pé, não tinha certeza se quem quer que estivesse caminhando por aí pudesse me ver, mas caso a resposta fosse sim, eu era um alvo certeiramente fácil. Era tarde para voltar, era arriscado subir. O que faria? Tive a impressão de ver um vulto negro passar por entre os carros.-Alguém pode me dar uma arma por favor?- pediu Arya sussurrando, congelada como eu. Fechei as mãos em punho e me esforcei para não demonstrar estar assustada. Uma brisa forte veio na nossa direção, e trouxe consigo o som alto e claro de fricção metálica. Verificação de cartucho, desativação da trava de segurança, o que quer que significasse era, com toda certeza, o sinal de que a nossa companhia estava armada. E isso me dava ainda mais medo.-Ryan, desça daí- Kyah ordenou, falando baixo e ainda com o olhar preso entre os carros.-Pode ser perigoso- Cloud avisou- sinalizar que ela não queria ser vista.-Consegue ver eles?- Parker perguntou, mirando sua arma. Procurei brevemente os carros, mas tudo continuava exatamente igual á como eu tinha visto da última vez, e mais nenhum vulto apareceu. De qualquer forma não quis fazer isso por muito tempo, mal conseguia ficar de pé ali. Balancei a cabeça negativamente.-Talvez eles também não possam ver ela- Cloud sugeriu.-Mas se conseguem, vão achar que ela é um soldado, ela está usando uniforme- Arya argumentou- Acho que Kyah tem razão. Olhei para a garotinha, pendurada há doze metros de mim. Sabia que não podia deixá-la ali, assim como não tinha deixado nenhum deles anteriormente. Agachei-me sobre a coluna e, com um pouco de equilíbrio, tiro uma das minhas botas.-O que você está fazendo?- Kyah disse, elevando o tom de voz- Ryan!-Ora, eu sou impulsiva e incapaz de me manter quieta, Kyah- respondi, continuando a subir, tirando a outra bota e a jaqueta- esperava o que de mim?-Você esqueceu de mencionar sociopata- ele respondeu, sem demonstrar humor- mas neste caso parece mais suicida. Respirei fundo e soltei a coluna. Tinha certeza de que eles (quem quer que fossem) não atirariam numa garota sem uniforme que está salvando uma menininha indefesa, certo? Comecei a andar sem me apoiar á lugar algum, e dava passos lentos. Cloud brincou:-Vamos caminhar um pouco pessoal. Encontrar nossos amiguinhos.-Eu vou ficar, dar cobertura para elas- Arya disse, com uma pistola em mãos (a qual apertava fortemente com as duas mãos). Agora, estava á mais ou menos dois metros e meio do chão. Mal podia escutar qualquer um deles. Podia ver através dos carros, podia ver a água do lago( afluente do mar, vulgo, Toxic Beach) se expandir até o horizonte, podia ver minha sombra nos destroços do chão, e podia ver as rachaduras no concreto da coluna. Não sabia se deveria olhar para o chão, ou se era uma ideia ruim. Não sabia se, no final tinha sido uma boa ideia. Tinha medo de pensar sobre isso, mas á cada passo que eu dava, me afastava mais do chão. Ao menos ninguém tinha atirado em mim ainda. Olhei para a direita e vi os soldados de vermelho avançarem entre carros, e os escombros. Eles caminhavam devagar, e permaneciam sempre segurando as armas á frente do corpo. Mais á frente, haviam pessoas de preto, armadas e tão cuidadosas e silenciosas quanto seus alvos. Me ocorreu que muito provavelmente eles fossem os causadores disso tudo, voltando para terminar o trabalho. Quando imaginei o confronto, e percebi o quanto meus pensamentos estavam repletos do sangue que seria derramado, fechei os olhos com força por um breve segundo, tomando cuidado para não me desequilibrar, e tentando afastar os pensamentos. Eles estavam cada vez mais perto de se encontrar, e eu não conseguia avançar rápido o suficiente. O que seria de nós? Três metros entre eles, quatro entre eu e a garotinha, e ela começou a acordar. Mesmo á distância que estava, podia ver quando ela começou a esfregar seus olhos.
Entrei em desespero e comecei a correr. Literalmente correr, pela coluna de concreto. A garotinha abriu os olhos. Armas apontadas dez metros abaixo. A garotinha viu onde estava, percebeu a forma com que estava suspensa e se viu tomada pelo pânico. Ela começou a gritar, se sacudir inconscientemente, e eu acabei escorregando o pé da coluna. Precisei apoiar as mãos na coluna, mas me impulsionei.
A cadeira da menina começou a ameaçar cair, e todo o utilitário de repente estava balançando perigosamente. E eu ainda estava á espera de ouvir um tiro vindo do confronto á baixo. Saltei da coluna ao utilitário, e segurei os braços da garotinha, que agora gritava histericamente. Joguei meu corpo para dentro do carro e desprendi o cinto dela. Mas, ainda sim, as coisas deram muito errado, e o pior: deram muito errado de uma forma muito rápida. O meu peso acabou sendo o que o carro precisava para se desequilibrar de vez. Apertei a garota entre meus braços e encolhi minhas pernas, prendendo-me á ela completamente, e então o carro começou a capotar para trás violentamente.
De início senti impactos fortes com algumas partes do carro, mas depois eu não estava mais tocando nada. Literalmente. Eu e a garota estávamos flutuando enquanto o carro girava ao nosso redor.
E então nós atingimos o chão. O impacto foi forte, mas pareceu amortecido pelos bancos traseiros e dianteiros. O carro se arrastou alguns metros ainda, antes de parar. Eu estava muito assustada, e fiquei ali, parada, deitada, abraçando a garotinha enquanto ela chorava afundando o rosto no meu peito.
-Meu Deus!- gritou alguém. Três pares de mão começaram a me puxar e a garota para fora. Cloud se impulsionou e, de repente, eu estava de pé do lado de fora do carro. Parker pegou a garotinha no colo e ela passou os bracinhos ao redor do pescoço dele. Várias vozes diferentes me perguntaram se eu estava bem, várias e várias vezes, e quando eu finalmente saí do transe, e voltei á realidade, sorri largamente, percebendo que eu estava bem, e disse:
-Isso foi demais. Uma, duas risadas. Meu olhar se encontrou com o de Kyah, e vi que ele exibindo um grande sorriso. E ela um sorriso lindo, largo e sincero. TInha impressão de nunca ter visto um assim antes.
Olhei ao redor e vi mais ou menos sete pessoas, além de mim, Kyah, Arya, Parker e a garota. Mas a maioria tinha o rosto coberto. Apenas um garoto e uma mulher estavam mostrando suas faces completamente. O garoto estava segurando uma pistola definitivamente grande, e era moreno. Também percebi que ele estava com o olhar fixo em Parker, que estava balançando a criança suavemente. Ele estava um pouco afastado do resto, e estava sussurrando alguma coisa. Com todo o tumulto, nem tinha percebido o quanto o choro dela tinha diminuído. E o garoto estava acompanhando cada movimento dele.
A mulher por outro lado, me parecia extremamente familiar. Algo no sorriso dela...no cabelo ruivo...
-Ryan?- ela perguntou, unindo as sobrancelhas para me encarar. Um nome surgiu á minha cabeça. Ela era segunda irmã mais velha de Cassie.
-Dakotta?- ela sorriu para mim- eu não posso acreditar...

RadioativaWhere stories live. Discover now