Oito

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-Foi melhor que chamar ele de babaca, ou não?- Perguntei, oferecendo um sorriso vindo do meu ego inchado.-Com toda certeza- Kyah respondeu do banco da frente, disfarçando um sorriso que eu percebi pelo espelho retrovisor. Arya virou-se para trás e disse, visivelmente contente:-Ryan, você é a minha heroína. Eu sorri para ela, e comecei a olhar pela janela. Minha mão estava dolorida, com dois ou três cortes superficiais, mas tinha valido totalmente á pena. Mas nem mesmo isso tirava da minha mente o meu sonho e de tudo o que tinha visto, e não pude evitar de me sentir mal, porque mesmo que tivesse sido um sonho tinha uma chance de ser real. Em partes, obviamente. Eles haviam matado Cassie, minha mãe e meu pai. Com certeza usariam meu sangue, e poderiam me matar. Olhei para o coldre de Kyah, no banco do motorista e percebi que eles poderiam me matar naquele exato momento. Ivan podia ter matado meia hora atrás. Bom, apenas se ele não calculasse o custo que seria perder o invólucro do vírus Apocalypse, mas podia. A grande pergunta que martelava em minha mente era: Se tudo estivesse exatamente da forma com que estava em meu sonho, Parker, Cloud e Ivan conseguiriam matar a sangue frio, daquela forma? Arya não tentaria nem mesmo impedir que me matassem, e se contentaria com uma amostra do meu sangue? E Kyah, atiraria na minha cabeça sem hesitar? O quanto do maior dos pesadelos poderia vir a ser real?-Você já matou alguém, Mc'Boyd?- Perguntei, desviando minha atenção para ele. Kyah olhou para mim pelo retrovisor e ficou quieto por alguns segundos. Depois desviou o olhar e respondeu:-Sim, matei. Minha boca literalmente se abriu. A minha parte esperançosa jamais esperaria essa resposta. Como? Se eu fora a única sobrevivente da primeira missão deles, e ele não me matou, como ele poderia ter matado alguém? Várias perguntas me vieram á cabeça, como quem, quantos quens e quando. Ele deve ter percebido meu espanto e acrescentou de repente:-Mas já faz algum tempo. Levei alguns segundos para assimilar a informação, e voltei a erguer o olhar:-Doutora?-Somente se você contar co-criar um vírus mortal...- ela respondeu, e se revirou no banco para completar- sim, eu ajudei a fazer o Apocalypse tanto quanto o maldito do Emery! Aquele maldito sorriso perfeito!-Você sabe que vai matar milhares de pessoas, não sabe?- Murmurei.-Outros milhares de pessoas já morreram, que diferença faz a essa altura?- Ela respondeu, defensivamente. Escorei-me e voltei a olhar pela janela.-Estes milhares são exclusivamente sua culpa.-Todos nós nascemos na guerra, e somos forçados a fazer coisas que não queremos fazer- Kyah respondeu, soando distante e calmo, quase distraído-O que você esperaria?-Esperaria que tivéssemos escolhido abandona-la, e não continua-la- exclamei, com o tom de voz um pouco elevado.-Você não pode nos chamar de monstros!- Arya gritou, com a voz embargada. Inclinei-me entre os bancos e respondi:-Eu nunca disse isso...- e esperei um pouco para completar- veio de você.-Não é tão fácil assim- Kyah argumentou, com os olhos presos na estrada- e todas as pessoas que já morreram? Voltei lentamente até escorar-me no banco. No fundo, ele tinha razão. Porque as mortes que eu carregava não me faziam querer paz, faziam querer vingança. No entanto, algo martelava na minha cabeça.-Mas não vai se tornar mais fácil suportar a dor aumentando a lista. Depois disso tudo ficou silencioso. Era terrivelmente desconfortável e triste. Pelo que eu podia ver, Arya agora estava abraçando o próprio corpo, envolvendo-se num ato de auto-compaixão. Ela estava tão voltada para a sua janela que estava praticamente de costas para Kyah. Ele por sua vez, concentrava-se em dirigir, mas também parecia muito chateado. Estava travando o maxilar outra vez, e para piorar seus olhos estavam repletos daquele azul intenso, inquieto e culpado. Me fez desejar nunca ter dito nada daquilo, e espremer-me no banco, arrependida. No final da manhã, recusei minha lata de torta de sardinha e permaneci sentada no carro. Nada naquelas runas de cidade me interessava, e eu não estava com a menor fome. Na verdade, o pensamento que martelava na minha cabeça naquele momento era: Porque nunca ninguém tinha pensado em acabar com essa guerra antes? O próximo turno era da única que ainda não havia dirigido o sedan, Cloud. Por, sinal ela parecia extremamente incomodada com isso. Ajustou a proximidade do banco ao volante no mínimo três vezes, passou um certo tempo procurando a ignição, e colocou o cinto de segurança como se estivesse lutando contra uma fera selvagem. No fim, ela começou a conduzir devagar, mas aí precisou parar para ajustar os espelhos. Na minha opinião, não era necessário, porque ela não fez grandes mudanças. Ela tinha basicamente a mesma estatura que os motoristas anteriores, então não estavam tão desregulados.-Motos não tem toda essa tranqueira- ela murmurou em certo ponto- por isso gosto mais delas.-Imagino que não tem chance de eu conduzir um pouco, não é?- perguntei, desanimada.-Não mesmo, supergirl- ela respondeu- Mas se te consola, eu te daria o meu turno com um grande prazer. Numa determinada curva, abandonamos o resquício de civilização que vínhamos seguindo até ali. Deixamos para trás as camas, as paredes de concreto, os telhados, e o asfalto. Agora estávamos numa estrada de chão batido, que parecia ser estreita demais para ter sido planejada para um carro. De um dos lados, um morro não muito alto de que terra coberto de mato, e do outro, algumas árvores magrelas e baixinhas, espalhadas entre um matagal alto com vários tipos de folha e até algumas flores. Provavelmente elas eram venenosas. Os troncos e a luz do sol faziam com que a estrada parecesse cheia de listras. Durante a viagem, observei como a mata á esquerda foi ficando mais fechada, mas densa, com mais árvores, e que tinham troncos maiores, assim como as copas. Á direita, o morro de terra foi aumentando gradativamente até se transformar literalmente numa montanha, que subia num ângulo quase reto. Era engraçado ver como as árvores cresciam totalmente na direção certa apesar da inclinação do terreno no qual nasciam. Logo estávamos praticamente engolidos pelo caminho, apenas com resquícios de luz do sol que faziam caminho entre as folhas nos galhos. Simplesmente lindo. Após subirmos uma colina bastante alta (o suficiente para subir apoiando as mãos no chão), nos deparamos com uma mansão de concreto, relativamente nova e georgiana. Parecia ter dois andares, a julgar pelas janelas que se estendiam simetricamente acima dos enormes portões principais. Eles eram feitos por uma madeira escura e pareciam bastante resistentes, e o acesso até eles era uma escadaria curta, coberta por uma fachada longa, que era sustentada por pilares ornamentados. A casa inteira tinha um tom de bege muito claro, quase como um branco amarelado, mas era charmoso, e todos os batentes eram brancos. Se tivesse que adivinhar a idade do lugar, diria que fora acabado de ser construído, apesar de parecer abandonado.-Incrível, os entalhes nas colunas, a estrutura...- Arya murmurou.-Se eu fosse o dono, não a perderia de vista- Parker comentou, girando sob os calcanhares á procura de algo. Ele tinha razão, e Ivan acenou, concordando. Ele esfregou suas mãos.-Vamos passar a noite aqui, nos separamos para vasculhar mais rápido.- Ele concluiu, cruzando os braços.-Certo, Seattle e Casey comigo, Mc'Boyd e Mercer com você- Cloud sugeriu, apontando para todos na ordem correta.-Nós pegamos a casa- Kyah disse rapidamente e estendendo as palmas, enfatizou sua determinação em garantir para si o serviço. Parker fez uma careta e logo se afastou com os outros, indo em direção as árvores que delineavam o fim da clareira. Suponho que com a escolha de Kyah, eles haviam ficado com o perímetro. Tentei cruzar os braços, esquecendo por um instante que eu continuava algemada, e o resultado não me deixou nada contente. Acho que estava na hora de acabar com essa palhaçada de ter que andar como um detento porque desferi dois míseros socos. -Se me soltarem, eu posso ajudar- argumentei, estendendo os pulsos na direção dos meus parceiros. Kyah soltou um riso e balançou a cabeça. Ivan apontou-me seu dedo indicador para me responder:-Você vai ficar sentada onde eu mandar, porque se respirar errado uma única vez, vai ser um invólucro morto! Enquanto ele falava balançando sua mão direita, percebi que a esquerda continuava abaixada, num movimento repetitivo em que se abria e esticava os dedos ao máximo, e em seguida se fechava em punho lentamente. Uma atitude bastante curiosa, mas não se comparava á ameaça que ele acabara de efetuar sobre a possibilidade de eu respirar errado. Ignorei e baixei os braços claramente insatisfeita. O local de escolha de Rye era o topo da escadaria de acesso, que me levou a questionar a criatividade dele, além da competência e da própria inteligência. Ele inicialmente alegou que desta forma, os dois grupos poderiam me vigiar, mas isso era uma verdade relativa. Nenhum dos dois podia me ver de dentro da casa, nem se estivessem no andar da cima, por causa da fachada, e eu não podia mais ver Cloud, Parker ou Arya, portanto dificilmente eles me veriam. Desta forma, minha conclusão é: Eles levam muito a sério a coisa de seguir as ordens do capitão, por mais idiota que elas fossem. A parte boa nisso era que eu finalmente tinha uma oportunidade, depois desses dias todos. Uma chance. Poderia chegar até o carro e fugir com ele. Será que dá pra dirigir algemada? Precisava localizar o outro grupo, até porque seria estúpido demais correr pela clareira, e acabar esbarrando num deles. Forcei o olhar e procurei por qualquer coisa que se movesse em meio a mata. Após vasculhar um pouco, percebi uma macha branca: A roupa de Arya. Eles estavam muito perto da direção para qual eu teria que correr, teria que esperar que passassem o suficiente para eu alcançar o carro com vantagem sobre eles. Tentei manter o rosto livre de expressão, pois agora eles definitivamente poderiam me ver. Tentei disfarçar a onda de adrenalina que percorreu meu corpo, mas arrumei a postura e remexi-me em meu lugar. Contei os minutos, observei discretamente o progresso deles. Estavam passando pelo meu caminho quando comecei a balançar meu pé de forma frenética. Eles finalmente se afastaram o suficiente. Fiquei de pé, tomando coragem e...-Mercer!- Gritou uma voz de dentro da casa. Com o susto, mal sabia dizer a quem pertencia. Congelei, permaneci estacada no lugar sem conseguir me mover. Tinha um pressentimento fortíssimo de que eu estava tremendamente ferrada.-Ryan!- Chamou a voz outra vez. Estranhamente, ela não era o que eu esperava. Continuava um pouco distante de mim, e parecia um pouco rouca. Parecia muito com um...pedido de ajuda?- Ah, meu Deus.... Virei-me e encarei uma sala de estar vazia, com os móveis cobertos por lençóis brancos. Haviam um ou dois corredores, algumas portas abertas, outras fechadas. Seria extremamente difícil encontrar a fonte dos chamados, se não tivesse nenhuma pista. Ao envés de vasculhar, parei no meio da sala e gritei:-O que aconteceu? A resposta, logo veio. Parecia ofegante.-Ryan! No último corredor!- Reconheci a voz. Pertencia á Kyah. Caminhei passo por passo, insegura se estava seguindo para o corredor certo. Aquele andar era bastante confuso. Quando cheguei no final da extensão do andar, logo á direita da escadaria que dava para o andar superior, estava um corredor largo. Mais ou menos na metade dele, Ivan Rye estava inconsciente, caído em cima da perna de Kyah, que estava sentado, respirando pesado e com dificuldades para livrar sua perna. Pisquei algumas vezes, incrédula e percebi que o velho estava exatamente em cima do hematoma na perna direita do rapaz, causado quando a moto a esmagou fugindo de um portão de ferro voador. Percebi também que a arma que deveria estar na mão dele estava metros longe, no meio do caminho entre mim e ele. Eu deveria fugir, ele não poderia me impedir. Talvez nunca mais tivesse uma oportunidade com essa. Kyah fechou os olhos, mordeu os lábios e bateu a cabeça propositalmente na parede atrás de si, demonstrando a dor que estava sentindo. Nem pareceu ter me visto. Me aproximei a passos largos e passei pela arma como se nunca a tivesse visto ali, tão convidativa. Fiquei de joelhos perto do corpo inerte de Rye e tentei bolar um plano. Ele parecia mesmo ser um cara realmente pesado, e talvez eu tivesse que chamar ajuda para move-lo. De qualquer forma, arriscaria tentar sozinha ao menos uma vez.-Eu vou puxar e você tira a perna- Avisei. Hesitei por um instante, antes de tocar nele. Provavelmente ficaria furioso se estivesse morto, observando o que eu faria do alto como um fantasma rabugento. Agarrei seu braço esquerdo e comecei a puxa-lo com toda força que podia, até que ele começasse a virar-se para mim e rolar para sair de cima da perna do garoto. Quando eu já tinha puxado o suficiente, Kyah agarrou sua perna com as mãos e a afastou. Soltei o braço do velho, e ele imediatamente rolou para o lugar onde esteve.-Como isso aconteceu?- Perguntei.-Eu não sei, ele só caiu em cima de mim- ele explicou, se recuperando- está vivo, só apagado. Bom, é melhor esquecer a história do fantasma, por enquanto, continua sendo só um velho babaca.-E o que fazemos agora? Kyah inclinou a cabeça levemente e me observou sério.-Primeiro, você me entrega minha arma- Disse, cuidadosamente.-Não- respondi- primeiro você vai tirar isso de mim. Estendi meus pulsos algemados na direção dele, com uma excelente expressão determinada. Já que tinha jogado fora minha oportunidade de fugir, eu sairia vitoriosa em algo, afinal. Kyah se deu por vencido e se esticou ( tomando bastante cuidado para não mover a perna machucada) para pegar as chaves do bolso do sujeito desmaiado. Depois que apanhou o molho, e enquanto observava todas a procura da certa, me aproximei ansiosa para me ver livre outra vez. Uma mão sua segurava a chave, a outra segurou a minha por trás e girou, fazendo com que a minha mão direta ficasse em cima, e a esquerda (a que ele segurava) embaixo. Dessa forma acessou a pequena fechadura, e destravou a pulseira de metal desta mão. Ele expirou, senti sua respiração na ponta do meu nariz, e só então percebi o quanto estávamos próximos. Enquanto ele soltava minha mãe esquerda e pegava a direita para livra-la, olhei para seus olhos e vi que pareciam concentrados, intensos, mas não muito preocupados, como de costume. Estava um pouco escuro no corredor, o que lhe dava um tom de azul profundo, e singular. Ouvi um clique, o destravar da minha mão direita. Senti seus dedos escorregarem pelas costas da minha mão, e seus olhos se fixaram nos meus. Estávamos ainda mais próximos do que antes, nossos narizes prestes á se tocar, quando ele passou a observar minha boca. Seus lábios se entreabriram. Eu inclinei a cabeça um pouco, e faltava apenas um centímetro. -Onde vocês estão?- Chamou Cloud das portas principais.-Capitão Rye?- Parker acompanhou, ressoando juntamente com passos. Afastei-me repentinamente e fiquei de pé. Kyah também parecia muito confuso.

RadioativaWhere stories live. Discover now