Capítulo 64 - Um Bando de Ícaros

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Eu e Antônio estávamos na terceira viagem entre o galpão e o campo de treinamento, em busca das últimas armas para pôr em lugar seguro, quando uma sombra espichada se juntou às nossas.

– Pode deixar que eu assumo daqui, camarada – um gringo alto de óculos disse para o pequeno Camarada Tonico, segurando o cano do rifle que o brasileiro se abaixara para pegar. Ergui a cabeça das armas que eu mesma apanhava para olhar o recém-chegado.

– Olá, John. Como foi no trabalho hoje?

As coisas ainda estavam levemente esquisitas entre nós. Tivéramos poucos momentos sozinhos, é verdade, mas certa frieza – ou mornidão? – e cautela revestiram nossas maneiras nessas ocasiões. Agora não parecia que ia ser diferente.

– Normal – ele respondeu, erguendo-se, com os últimos quatros fuzis nos braços, enquanto Tonico balbuciava um cumprimento e tomava seu rumo para a mesa ou para o banho. – As vizinhas me emboscaram e me assaltaram assim que entrei em casa, perguntando por você. Disse que tinha vindo passar uma temporada com uma amiga no campo. Então elas me perguntaram se estava tudo bem entre nós, acredita? – ele exclamou, erguendo as sobrancelhas, mesmerizado com a intromissão.

Soltei um riso abafado.

– E o que você respondeu?

– Que não era de meu costume expor meus assuntos pessoais publicamente. O que mais um britânico responderia? – ele riu, mas seu sorriso derreteu dos lábios ao vislumbrar minha expressão perturbada.

Assumindo completa seriedade, Astrakhanov acomodou as armas debaixo de um dos braços e, com a outra mão, passou a remexer o bolso, do qual extraiu uma tirinha de papel.

– Tinha um aviso de telegrama na nossa caixa de correio na hora do almoço e eu fui até a agência postal buscar.

– Alguém nos respondeu?

– Não exatamente. Mas essa notícia com certeza influenciará nossos planos – ele disse, me passando o bilhete.

Tive que manobrar um pouco para abri-lo, com os braços carregados; Astrakhanov tirou os rifles do meu colo e liberou minhas mãos para a tarefa. Um pequeno parágrafo surgiu diante dos meus olhos. A mensagem era bem mais sucinta, porém, pois cada palavra daquelas representava uma única letra. O tenente não a havia decifrado por escrito. Não tinha necessidade: eu conhecia o código, e bastou um olhar para que entendesse e me sentisse congelar.

Caetano preso. S.

Eu nem sei discernir quais foram os primeiros pensamentos que me passaram pela cabeça nesse momento. Acho que uma imagem de Caetano aparecendo no limiar duas noites atrás, pingando, com sua aparência rude e simpática. Ou a boa-vontade, ou as observações irônicas implicando com Silo. Sei que essas imagens estavam mescladas com um aperto no coração. "A Polícia pernambucana é ruim que só a praga", a voz de Praxedes cantou na minha memória, enquanto eu coçava a cabeça em perplexidade.

Então outra coisa me ocorreu, e eu relanceei um olhar disfarçado para Astrakhanov, que, infelizmente, ele captou, e se eu rosto se pintou de enfado e aborrecimento.

– Não tenho nada a ver com isso, se é o que quer saber – disse, em voz baixa, com os olhos no curral do qual nos aproximávamos para guardar as armas. – Eu nem sei onde ele andava se escondendo.

– Desculpe – murmurei.

O tenente encolheu os ombros.

– Em parte é culpa minha. Sempre insisti para você ser mais cética, agora colho os frutos – ele me encarou, com um sorriso triste. – Eu criei um monstro.

Dias VermelhosWhere stories live. Discover now