Vinte e Três

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O campo força se desfez. Catherine se recuperava da dor que sentiu, sabia que seria assim. O sangue de Peter escorria pela neve, parecendo querer manchar cada centímetro do lugar. Allyssa deitou-se sobre o irmão, manchando de sangue toda a seda do seu vestido, enquanto gritava ‘assassina’, para aquela a quem sempre admirou. Cath chorava com as mãos cobertas por sangue.

Uma criatura de tatuagens negras levantou Catherine do chão a puxões de cabelo.

– Esqueçam a garota, de mais nada não vale o seu coração. – gritou alguém escondido na multidão.

Todas as criaturas deixaram as armas caírem, pensavam eles que tudo tinha acabado, pensavam que o coração imortal já não pulsava mais no peito de Catherine. Engano. Nenhuma das histórias tem total veracidade em seus fatos. Catherine não tinha perdido o coração, ele ainda estava ali, batendo em seu peito como sempre esteve.

Lizzie sentou-se ao lado de Cath. O corpo de Peter estava ali, imóvel, sem vida, sem ele.

– Sei que fez a escolha certa, Cath. – a bruxa nunca tinha chamado Catherine por seu apelido. – Eu não sei como teve forças para conseguir fazer isso, mas mesmo assim ainda penso que escolheu o certo, e sei que ele ainda está aqui. – Lizzie colocou a mão no peito de Cath. – Não precisa ficar com medo, não vou contar a ninguém. Nem eu nem ninguém mais, nem mesmo o bruxo que estava com eles, pois ele agora está morto.

Lizzie levantou-se, sorriu para Catherine e começou a se afastar.

– Aonde você vai?

– Temos que cuidar desta ferida, ele está perdendo sangue demais. – Lizzie deu um passo. – Não tem com o que se preocupar, Catherine. Não vou deixar o sangue dele coagular. Vamos regressar, e lá você fará o que tem que ser feito, ainda estamos expostos à carnificina.

A bruxa seguiu para a aglomeração. Essa foi a primeira vez em que Catherine viu Lizzie com bons olhos e não como alguém que queria roubar o seu namorado.

Uma multidão de corpos estava espalhada pelo chão, e o cheiro de putrefação era ainda mais insuportável.

– Se desde o principio eu soubesse que era você, eu teria acabado com a sua vida no mesmo instante. – Cath engoliu em seco. – Tudo bem, está acabado agora. Agradeça à criança por ainda estar viva. É só por ela que estou te poupando, Catherine. – Ethan olhou com nojo para Peter. – Pelo menos eles acreditam que Peter morreu por nós. – e então a criatura chutou o corpo sem vida e saiu.

Allyssa chorava, apertando a cabeça de Peter contra o seu corpo magricelo.

– Allyssa...

– Por que fez isto com ele, Catherine? Ele era a única pessoa que me restava na vida. Porque você matou a única pessoa que se importava comigo, que me aceitava mesmo eu sendo tão estranha?

Catherine não respondeu, não soube responder.

Lizzie veio com aquelas parafernálias da medicina extraterrestre, limpou o ferimento de Peter e depositou um líquido feito com ervas na ferida funda.

Este dia jamais desapareceria da mente de Catherine. Ninguém perguntou como ela se sentia, como era amar àquele a quem ela deveria matar. E assim ela não encontrou nenhuma alma capaz de julgá-la de forma imparcial, pelo seu ato, nem mesmo a pobre Allyssa. E ela tinha razão. O que você faria se soubesse que em algum momento, no futuro, um ser o cassaria até conseguir o seu coração? Sentiria medo por toda vida? Quem não sentiria. Quem o culparia por ter nascido com a vida de outra pessoa?

Kyle surgiu com um pedaço de flecha preso em seu braço esquerdo. Lizzie puxou a ponta que estava exposta, retirando a madeira, e fez um curativo. Kyle era uma criatura cheia de vida comparada a Peter.

As coisas pareceram fugir do controle, quando Ethan disse que não poderiam regressar com o corpo de Peter e que teriam que enterrá-lo ali mesmo ou deixá-lo onde estava, que os corvos e vermes dariam conta do trabalho.

Para a sorte de Catherine, Lizzie trazia consigo uma pedra transportadora. A mesma pedra vermelha que Peter vira brilhando na mão de Kyle, no dia em que se conheceram. Isso fez Cath lembrar-se que Peter sempre quis descobrir como as criaturas faziam o tele-transporte, mas ela pensaria naquele detalhe outra hora. A bruxa então despejou um líquido verde, na boca do corpo sem vida e pediu para que Catherine fosse com o corpo de Peter, porém ela não aceitou a ideia, pois não sabia onde iria parar. Então, depois de muita conversa, resolveram que seria Kyle que retornaria para o castelo com o corpo de Peter.

๑๑๑

Foram longos os dias de regresso. Todas as noites, quando chegava a hora de dormir, Catherine sentia um medo incalculável, mesmo com a bruxa dormindo ao seu lado, bancando a sua guarda-costas. Mas os dias passavam rápidos e ela rezava durante todo o tempo, para que os órgãos de Peter ainda estivessem intactos.

Quando chegaram ao castelo, Kyle a levou até o quarto onde estava o corpo de Peter; Kyle nada disse para Catherine, apenas abriu a porta e ela entrou sozinha na ampla sala, quase vazia, onde em uma cama-maca o corpo de Peter jazia, coberto por um lençol branco. Cath teve uma crise de choro e ao mesmo tempo sentiu raiva de si mesma, por ser tão sentimental.

Ela retirou o lençol. A pele de Peter estava fria. Ele estava nu, e todo o seu corpo estava marcado por uma tatuagem vermelha sem fim. Para Cath não importavam as novas marcas no corpo de Peter, ela só o queria de volta.

Catherine colocou a mão no peito de Peter, concentrou-se e invocou os espíritos, para que dessem a vida de volta ao seu amado. Ela concentrou-se no que iria fazer, fechou os olhos, depositou tudo o que tinha, e nada. Cath tentou mais uma vez. Nada. Talvez não lhe tivesse sobrado mais tempo. Mais uma vez e Peter não reagia. Catherine bateu o peito de Peter, esmurrou o seu tórax, suplicou que ele voltasse só que não obteve resultado.

– Peter, por favor! – suplicou ela.

Catherine tentou mais uma vez, e tudo o que conseguiu foi a convicção de que seu Peter havia realmente morrido. Ela era agora uma assassina. Ela tinha matado o homem que mais amou. Catherine sentia-se um monstro.

Ela escorregou pela cama-maca e sentou-se no chão, abraçando as pernas. Tinha que ter dado certo. Não era a sua primeira vez, já tinha ressuscitado o seu cachorrinho Bile três vezes. Isso não podia estar acontecendo. O Peter se fora.

Acorrentada em seu sofrimento, mais do que merecido. Catherine sentiu-se abraçada e, realmente, braços envolveram o seu corpo. Ela não abriu os olhos, que estavam fechados, para ver quem seria a criatura que lhe oferecia aquele gesto de generosidade e misericórdia. Ela repetiu várias vezes, para si mesma: “ele está morto, eu o matei!”. Sentindo-se abraçada, Catherine chorou em um estado de convulsão. Ela não sabia ao certo que tipo de personalidade habitava em seu ser; tinha matado o garoto que a defendeu no jardim de infância, que fazia as suas provas de álgebra... E o que ela lhe ofereceu? Mentiras e uma morte sem misericórdia.

– Eu o matei! – murmurou em soluços.

Um riso bobo ganhou espaço entre os lamentos da garota.

– Eu ainda estou vivo... Confuso, mas mesmo assim estou vivo.

Abrindo os olhos marejados, Catherine uniu as sobrancelhas e viu o corpo tatuado de Peter, ele sorriu. Ela sorriu. Os olhos de Peter agora eram brancos como ele sempre temeu, e mesmo com a transição concluída ainda era ele, exatamente como Catherine o havia guardado em suas lembranças.

Ela o abraçou e os braços dele demoraram um pouco para envolvê-la como se deve, era como se Peter tivesse acabado de acordar de um sonho ruim.

– Me perdoe por não ter contado. Por favor, Peter, tente entender. Eu não fiz por mal, eu estava tentando te proteger...

Catherine foi calada por um beijo inesperado. Peter a havia perdoado, por mais que ela não merecesse, ele tinha perdoado e nada mais importava agora, já que ela entregara a vida dele de volta. Passaram mais tempo do que Cath jamais havia ousado desejar, perdidos em beijos, e ela pedia desculpas a ele a cada instante, como se ainda não estivesse acreditando que o perdão pudesse ser tão bom.

Depois Peter pediu para que Catherine levasse roupas e comida, assim como pediu para que ela mandasse Kyle ir até a ampla sala onde ele estava agora escondido. E assim ela fez.

O último AdãoWhere stories live. Discover now