Capítulo 02 - Depois da cerca

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— Marga, você nunca se importou com o que os outros falavam. Deixe-o brincar, nossa plantação está bem cercada e segura, e também, nosso filho é forte como o próprio Astro-Rei!

Rencor olhou para Tonto de forma que o encorajou a ficar de pé. Margarida tirou uma fatia da torta e deu para o menino, que mordiscou e agradeceu ainda com a boca cheia.

— Filho, só procure não se distanciar muito, tudo bem? — disse Margarida ao menino ao pé da porta. — e não deixe que ninguém veja sua marca!

Não deixar ninguém ver a marca! Essa era a advertência que Tonto mais ouvia. E embora ele não entendesse a importância daquela advertência ou até mesmo a razão por trás dela, se sentia incomodado só em se imaginar mostrando a marca para outra pessoa,  nem mesmo quando o desastrado do Oala jogou lama em sua camisa, Tonto correu para casa urgentemente, trocou de camisa e só depois de conseguir manter a calma, voltou a brincar com as outras crianças na pequena poça de lama que sempre se formava ao redor do poço.

— Marga, você acha que estão procurando por ele? — somente quando Tonto estava distante, os dois se permitiram expor suas faces de preocupação.

— Eu acho que sim, mas não devemos prender ele aqui. Você sabe o quanto a liberdade é valiosa — respondeu ela sentando ao lado do amado marido.

— E se estiver chegando o dia da partida dele? Como vamos reagir?

— Bom, se ele vai partir hoje ou amanhã, não sabemos. Mas, fomos avisados disso. Eu já sofri muito com essas incertezas, Rencor. Devo dizer que, se ele realmente partir, estarei preparada para recebê-lo de volta no momento certo.

— Os Bobo-cuias — disse Rencor. — Acha que são criaturas boas? Eles trabalham para o Inventor?

— Uma criatura boa não faria o que eles estão fazendo, estão assustando as pessoas, raptando crianças por toda parte. Isso não é algo bom. Na nossa época não foi assim, você lembra?

Por um instante, Margarida e Rencor olharam através da porta aberta, viram Tonto se distanciar apenas um pouco para o quintal sob a luz dourada, no limite dos girassóis. Os dois se abraçaram e se confortaram, pois sabiam que o destino de Tonto era como um tapete a ser tecido pouco a pouco, com texturas diferentes, e tudo poderia mudar a qualquer instante.

Os girassóis eram como seres conscientes para Tonto, e no meio deles, o menino se sentia poderoso, pois de uma maneira estranha, as flores o seguiam, girando para qualquer direção que ele estivesse. Ele podia sentir a vida em cada caule, em cada folha verde e em cada semente em suas estruturas.

Ele fechou os olhos enquanto entrava devagar no campo de girassóis, com todas aquelas flores altas a se curvar como se quisessem cumprimentá-lo, como se ele fosse o próprio sol delas. Os primeiros passos foram contados até ele estivesse por inteiro dentro do imenso campo.

Já podia correr.

Passos acelerados e gargalhadas distraídas, frouxas como o ar livre acima das nuvens. Tonto corria e olhava para os girassóis, que olhavam para ele e algo poderia lhe garantir que as plantas abriam passagem para que o menino pudesse correr ainda mais. Pouco depois, Tonto chegou ao fim da plantação, ficando cara a cara com a cerca de arames farpado. Além dali, havia um mundo inteiro desconhecido para ele, que de certa forma, nunca foi interessante, pois tudo que ele precisava estava naquele vale: sua família.

Uma brisa agitou seu cabelo, como se indicasse o horizonte além daquela cerca, mas ele não estava disposto a atravessar, não até aquele exato momento em que viu algo se mover na estrada do outro lado.

De susto, Tonto paralisou, observou e segurou a respiração ainda ofegante. Apertou os olhos e tentou enxergar além da cerca, pois havia algo se movendo e parecia tenebroso. Depois de alguns segundos, tudo ficou mais nítido: no caminho de pedras prateadas que se estendia do outro lado da cerca, onde o Vale do Verão chegava ao fim, os Bobo-cuias estavam passando. Tonto se ocultou por completo atrás de um grande girassol e com os olhos arregalados, viu pela primeira vez, aquela criatura vagar de um lado para o outro. Usava uma capa longa e marrom, com uma máscara de coruja tão extravagante que causava arrepios, os olhos amarelos como fogo, as penas da ave a enfeitar toda a máscara e um nariz que não se assemelhava ao bico de uma ave, parecia mais uma enorme cenoura laranja e pontuda. Enquanto andava para lá e para cá, o bobo-cuia dizia algo, mas não era possível entender, pois era sua própria língua:

— Bulubru pru blublu bululu!

Era um som agudo e ao mesmo tempo engraçado, Tonto se permitiria rir, se não estivesse apavorado.

E houve mais agitação do outro lado da estrada.

Tonto se esgueirou, se esticou na ponta do pés para ver o que estava vindo ali. Era mais um bobo-cuia. Este, usava uma capa cinza e também longa, e sua máscara era algo familiar a um guaxinim, os olhos esbugalhados e tão intensos e ao lado dele estava alguém, uma menina de pele tão branca que brilhava e lançava frieza ao vento. Os olhos de extremo azul eram chamativos e Tonto se arrepiou dos pés a cabeça ao encarar os cabelos azuis cor-de-neve da garota irritada. Ela se balançava, berrava e grunhia com violência. Aquela menina, com certeza não era do seu Vale, e ao olhar para as vestes azuis dela, Tonto compreendeu que ela era do Vale do Inverno. Então os Bobo-cuias se comunicaram entre si:

— Bulu blupru! — disse o que usava máscara de coruja extravagante.

Irritado, o máscara de guaxinim acinzentado bravejou e os dois seguraram a garota pelo braço.

Nesse instante, Tonto se motivou a se abaixar por trás do girassol, catou uma pedra do tamanho de uma moeda e a lançou sem nem ao menos entender o que estava fazendo. Por um segundo, achou ter errado qualquer alvo, mas a pedra acertou a perna esquerda da menina, que gritou e gemeu.

Ele não queria acertar a pedra na garota e poderia se desculpar por aquilo, se não fosse tarde demais.

A menina gemeu e se contorceu para tentar apalpar a perna ferida, livrando seu braço das mãos esqueléticas dos Bobo-cuias. Ela podia correr, pois os Bobo-cuias não souberam o que fazer ao ver a menina gemer tão alto e começaram a discutir entre eles.

Percebendo a oportunidade, ela correu, partiu na direção das árvores de mármore, que estavam logo do outro lado da estrada prateada, mas antes de seguir, ela lançou um olhar para a plantação de girassóis e seus olhos se encontraram com os dourados olhos de Tonto, que estava paralisado pela adrenalina. E então, a garota em tons de azul desapareceu entre as árvores de mármore deixando os Bobo-cuias ainda irritados.

O sol já estava se pondo no Vale do Verão, e naquele momento, Tonto sentiu seu peito arder mais uma vez, viu também, aquela luz aquecida emanar da sua marca de nascença. Aquilo poderia chamar a atenção dos Bobo-cuias que estavam logo ali, irritados e bobos, gritando um com o outro. Olhando para as criaturas, Tonto deu um passo após o outro e se perdeu entre os girassóis que mais uma vez se curvaram para dar passagem ao garoto.

 Olhando para as criaturas, Tonto deu um passo após o outro e se perdeu entre os girassóis que mais uma vez se curvaram para dar passagem ao garoto

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