Capítulo 59 - Pé-de-Valsa

Start from the beginning
                                    

Talvez os homens comunistas devessem fazer isso também, em vez de se juntarem a uma mulher – especialmente uma não-comunista – e complicarem a vida dela sem pedir. "Apesar de que, muitas vezes, eles só aderem à causa depois de casados", considerei então. E não podíamos exigir o celibato como pré-requisito para a admissão. Nossas fileiras minguariam significativamente.

– Eu até gostaria de alimentar a humanidade – ela confessou. – Lutar por isso. Mas a verdade é que atrás de alguém pensando em alimentar o mundo todo quase sempre tem outro pensando em como alimentar aquela pessoa.

As palavras delas caíram nos meus ouvidos como uma pedra cai num lago, formando uma ondulação em seu entorno e obliterando o restante da expansão aquática. Assim também meus ouvidos ficaram moucos para os ruídos e a cantoria da festa até que assimilei toda a verdade naquela afirmação.

– Sinto muito pelas dificuldades que nossos combates fazem vocês passarem – eu respondi, com sinceridade.

Zefinha encolheu os ombros, e o filho, que cochilava em seu colo, acordou e saiu correndo para um novo turno de brincadeiras, com o irmão atrás.

– É culpa de vocês não. É culpa da polícia e dos coronéis e de toda a canalha da mesma laia – ela disse. – Vocês lutam pelo que é justo. Alguém tem que fazer isso. E deixe que aqui atrás a gente aguenta as rebarbas da encrenca – concluiu, com um sorriso tranquilo.

Seus olhos se desviaram para a fogueira, ao ver que Torquato Filho e Zé pretendiam saltá-la, imitando os adolescentes, mas sem ter tamanho pra isso. Ela se ausentou um momento para resgatá-los e levá-los a algum brinquedo menos arriscado. Fê-los prometer que não voltariam para a fogueira nem se desviariam da sua vista, e voltou para seu lugar ao meu lado no banco. Eu já estava observando a reunião dos homens novamente.

– Dona Anita está louca pra ir lá né? – Zefinha riu.

Suspirei, e confirmei com um aceno. Se inclinando para mais perto, ela cochichou no meu ouvido:

– Pois vá, vá que eu aguento elas aqui. Elas que boicotaram sua participação, disseram que achavam muito estranho, que é que você tinha que ir fazer no meio dos maridos delas? Eu disse que você é casada também e seu marido está junto, mas elas não tomaram confiança da senhora, só porque é jovem e sem filhos. Disseram que iam enredá-la em conversa pra você não ir, mas vá lá, vá. Eu dou cobertura.

Jovem? Com meus quase vinte e cinco anos, eu era mais velha que pelo menos um terço daquele grupo de esposas. Mas de fato, talvez a ausência de preocupações maternais me poupasse de rugas, além de me tornar, aparentemente, mais "disponível". Afinal de contas, eu ainda não passara de "mulher" a "mãe". Por algum motivo misterioso, quando você assume o segundo papel, perde a qualidade anterior aos olhos da sociedade.

Isso não justificava o ciúme bobo delas, é claro. Mas eu não estava ali para criar polêmica, já perdera tempo demais. Murmurando "obrigada" para Zefinha, eu me escapoli e ultrapassei várias barracas com cheiro de milho, rumo ao bar em frente ao qual os camaradas se reuniam, no meio de três mesas e quase ao lado da bandinha de forró.

– ...o negócio é uma greve. Mas tem que ser coisa grande, coisa pra chamar a atenção mesmo, como quando teve a da companhia de luz – Praxedes dizia, em voz contida, porém clara o suficiente para ser ouvida pelos colegas de mesa a despeito da interferência musical. – Ali sim o proletariado mostrou do que é capaz. Muitos companheiros despertaram e a burguesia tremeu nas bases. Precisamos repetir a façanha e, se possível, aumentar suas proporções.

– Que greve foi essa? – eu perguntei, ao me aproximar, apoiando-me de lado na cadeira de Astrakhanov. Ele fez menção de se levantar para me dar lugar, mas eu indiquei que não precisava por enquanto.

Dias VermelhosWhere stories live. Discover now