Capítulo 56 - Les Commères Miserables

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— Bom dia — respondi, me recuperando, e conseguindo plantar um sorriso nos lábios, simpático, eu esperava. — Vizinha, a senhora disse? Não tive o prazer de conhecê-la ainda. Eu e meu marido chegamos apenas anteontem...

— Chegaram na sexta à noite — corrigiu a mulher, e eu já vi com que naipe estava lidando, — mas estive muito ocupada para vir dar as boas-vindas antes. Meu nome é Ermenegilda — ela se apresentou, decidindo ser menos sisuda, e estendendo-me a mão. — E qual sua graça?

— Anita — eu disse. — Ana Amélia — corrigi; talvez estivesse cedo para apelidos. Ela acenou, e se embrulhou um pouco mais no xale.

— E o senhor seu marido, como se chama?

— John — respondi, contra a vontade. Sabia que esse nome logo...

— Ele não é daqui do Brasil, é?

...traria perguntas.

— Não, não é. John é inglês.

Eu esperava que ela não conhecesse muitos ingleses, ou seria um perigo maior para o disfarce de John do que os colegas de trabalho dele.

— Como os que trabalham na estação de trem?

— Exatamente como eles — concordei.

— E ele trabalha lá também, não? O vi indo para lá hoje cedo.

Sinceramente, por que a mulher estava me interrogando? Ela parecia saber os detalhes de minha falsa vida melhor do que eu. Não tive remédio a não ser acenar em concordância. Ia dar uma desculpa e me recolher em casa, e já estava juntando meus trastes para isso, quando a mulher indagou, espichando os olhos para o meu livro:

— A moça é estudada, é? Lê livro em língua estrangeira...

— Sim, eu sou professora formada.

— Mesmo? — a mulher ajustou o óculos sobre o nariz. — Minha irmã se formou professora também. Bem desajustada ela, mas assim pelo menos conseguiu um casamento. Foi assim que a senhora e seu marido se conheceram?

Com certeza o sorriso congelado na minha cara nesse momento devia parecer meio psicótico. Na intenção de que a velha se tocasse e desse no pé, não tentei desfazê-lo, respondendo entredentes:

— Nos conhecemos na escola, sim.

— Hm, sempre suspeitei que essa história de instrução era papo furado. Elas querem mesmo é laçar um homem — Ermenegilda resmungou, de si para si, não baixo o bastante que eu não pudesse ouvir.

Como nocautear uma velhinha no meu primeiro dia na vizinhança não refletiria bem em minha reputação local, nem na moral do Partido — embora ninguém soubesse, ainda, que eu era comunista — limitei-me a apertar a lombada do livro até os nós dos meus dedos ficarem brancos. E o pior é que, por mais que eu tentasse a cada três palavras dar uma desculpa para entrar em casa, a tal Ermenegilda me prendeu numa cadeia de perguntas que não se rompeu nem quando ela cumprimentou o leiteiro, e depois um velho a caminho do bar. Aliás, de brinde fiquei sabendo os podres dos dois, sem pedir. Aparentemente o leiteiro enrolava a noiva fazia seis anos e o velho em questão gastava no botequim todo o dinheiro que ganhava em trabalhos rurais, não dava nada em casa: a esposa tinha que se esfalfar com encomendas de costura para sobreviver. Bom, pelo menos agora ela já estava idosa e precisava sustentar apenas a si mesma; fora pior quando a batalha diária se destinava a criar os filhos.

Somente na terceira intervenção de estranhos eu consegui escapar da rede de fofoca. A vizinha da direita — Dona Ermenegilda morava à minha esquerda — saiu da sua casa com o cachorrinho, para levá-lo para um passeio. A bruxa deu um grito para cumprimentar a senhora do cachorro — Dona Jurema, segundo me apresentaram — e ela logo se aproximou, porque tinha uma fofoca nova sobre uma terceira vizinha que eu por ora desconhecia. Aproveitei o momento de distração em que elas compartilhavam as minúcias sórdidas de um suposto adultério para me abrigar dentro de casa, balbuciando uma desculpa sobre precisar ir ao banheiro.

Dias VermelhosWhere stories live. Discover now