— Bom dia — respondi, me recuperando, e conseguindo plantar um sorriso nos lábios, simpático, eu esperava. — Vizinha, a senhora disse? Não tive o prazer de conhecê-la ainda. Eu e meu marido chegamos apenas anteontem...
— Chegaram na sexta à noite — corrigiu a mulher, e eu já vi com que naipe estava lidando, — mas estive muito ocupada para vir dar as boas-vindas antes. Meu nome é Ermenegilda — ela se apresentou, decidindo ser menos sisuda, e estendendo-me a mão. — E qual sua graça?
— Anita — eu disse. — Ana Amélia — corrigi; talvez estivesse cedo para apelidos. Ela acenou, e se embrulhou um pouco mais no xale.
— E o senhor seu marido, como se chama?
— John — respondi, contra a vontade. Sabia que esse nome logo...
— Ele não é daqui do Brasil, é?
...traria perguntas.
— Não, não é. John é inglês.
Eu esperava que ela não conhecesse muitos ingleses, ou seria um perigo maior para o disfarce de John do que os colegas de trabalho dele.
— Como os que trabalham na estação de trem?
— Exatamente como eles — concordei.
— E ele trabalha lá também, não? O vi indo para lá hoje cedo.
Sinceramente, por que a mulher estava me interrogando? Ela parecia saber os detalhes de minha falsa vida melhor do que eu. Não tive remédio a não ser acenar em concordância. Ia dar uma desculpa e me recolher em casa, e já estava juntando meus trastes para isso, quando a mulher indagou, espichando os olhos para o meu livro:
— A moça é estudada, é? Lê livro em língua estrangeira...
— Sim, eu sou professora formada.
— Mesmo? — a mulher ajustou o óculos sobre o nariz. — Minha irmã se formou professora também. Bem desajustada ela, mas assim pelo menos conseguiu um casamento. Foi assim que a senhora e seu marido se conheceram?
Com certeza o sorriso congelado na minha cara nesse momento devia parecer meio psicótico. Na intenção de que a velha se tocasse e desse no pé, não tentei desfazê-lo, respondendo entredentes:
— Nos conhecemos na escola, sim.
— Hm, sempre suspeitei que essa história de instrução era papo furado. Elas querem mesmo é laçar um homem — Ermenegilda resmungou, de si para si, não baixo o bastante que eu não pudesse ouvir.
Como nocautear uma velhinha no meu primeiro dia na vizinhança não refletiria bem em minha reputação local, nem na moral do Partido — embora ninguém soubesse, ainda, que eu era comunista — limitei-me a apertar a lombada do livro até os nós dos meus dedos ficarem brancos. E o pior é que, por mais que eu tentasse a cada três palavras dar uma desculpa para entrar em casa, a tal Ermenegilda me prendeu numa cadeia de perguntas que não se rompeu nem quando ela cumprimentou o leiteiro, e depois um velho a caminho do bar. Aliás, de brinde fiquei sabendo os podres dos dois, sem pedir. Aparentemente o leiteiro enrolava a noiva fazia seis anos e o velho em questão gastava no botequim todo o dinheiro que ganhava em trabalhos rurais, não dava nada em casa: a esposa tinha que se esfalfar com encomendas de costura para sobreviver. Bom, pelo menos agora ela já estava idosa e precisava sustentar apenas a si mesma; fora pior quando a batalha diária se destinava a criar os filhos.
Somente na terceira intervenção de estranhos eu consegui escapar da rede de fofoca. A vizinha da direita — Dona Ermenegilda morava à minha esquerda — saiu da sua casa com o cachorrinho, para levá-lo para um passeio. A bruxa deu um grito para cumprimentar a senhora do cachorro — Dona Jurema, segundo me apresentaram — e ela logo se aproximou, porque tinha uma fofoca nova sobre uma terceira vizinha que eu por ora desconhecia. Aproveitei o momento de distração em que elas compartilhavam as minúcias sórdidas de um suposto adultério para me abrigar dentro de casa, balbuciando uma desculpa sobre precisar ir ao banheiro.
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Dias Vermelhos
Historical FictionEm 1933, o mundo estava como o conhecemos hoje: politicamente dividido, flagelado por guerras e recuperando-se de uma crise econômica sem precedentes. Os ânimos estavam inflamados ao ponto da selvageria. Maria Clara logo escolheu seu lado...
Capítulo 56 - Les Commères Miserables
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