Capítulo 55 - Audiência Real

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O Rei do Cangaço se acomodou em uma pedra achatada que havia ao lado da fogueira e fez um sinal para um cabra, indicando que nos trouxesse assentos também. Ele logo voltou com um toco de árvore, que eu e Silo conseguimos compartilhar, e um tamborete, entregue a Astrakhanov. Outro dos homens serviu o chefe, e, ao receber o prato, Virgulino perguntou ao capanga de maçãs do rosto pronunciadas:

– Criança, teu prato tá limpo?

– Oxe, Capitão... é claro que tá, eu lá sou homem relaxado?

– Então empreste pros nossos convidados. E me arranje mais três, diga aos cabras que eu mandei pedir.

– Mas...

– Depois você come, homem. Ou come numa folha, numa cumbuca, onde mais tu arranjar, se tá com tanta pressa.

Enquanto o rapaz ia cumprir a ordem, Lampião chamou calmamente:

– Maria!

Eu já estava respondendo "Quê?" quando lembrei que esse nome não me pertencia havia um bom tempo. Então fiquei calada e observei minha xará sair da tenda nos fundos do acampamento. Dela eu ouvira falar, mas nunca tinha visto retrato, o que me fez examiná-la com dupla curiosidade. Era cheinha e um pouco mais baixa que eu, de nariz fino e olhos e cabelos escuros, estes presos do lado da cabeça num penteado enfeitado com muitas presilhas preciosas. Tinha a pele mais alva que a maioria dos homens do bando e das outras mulheres que agora saíam das tendas também, ou apareciam, vindas do mato em torno.

A companheira de Lampião se aproximou, carregando seu próprio tamborete, prato e caneca, e acomodou-se à esquerda do amado. Vários colares pendiam também do seu pescoço, e usava anéis em quase todos os dedos. Os enfeites não atenuavam sua cara de poucos amigos e o efeito causado pelas cartucheiras. Nos cumprimentou com um aceno e um boa tarde educado e se virou para o chefe dos cangaceiros, aparentemente em busca de instrução.

– Faça o favor de servir os convidados, e depois pode se servir também.

A mulher obedeceu, enchendo nossos pratos com o cozido de feijão de corda que continha alguns pedaços de carne boiando e despejando café de um bule que fervia ao lado em nossas canecas. Lampião ofereceu cachaça para Silo, Astrakhanov e Perereca acrescentarem no seu café, mas só o terceiro aceitou. Depois a outra Maria se serviu também, e só então Lampião liberou o acesso ao panelão. A um sinal seu, seus asseclas foram se aproximando com os respectivos pratos e canecas de latão, serviram-se e se espalharam pelo acampamento, agachando-se ou sentando-se no chão ou onde houvesse suporte, para almoçar.

Os rapazes se lançaram ao cozido imediatamente – nossa caminhada matinal fora mesmo longa – mas eu fiquei curiosa de saber o que era aquele animal que ingeriria nos próximos minutos, e me pus a cutucar os pedaços de carne com a ponta do garfo. Lampião deve ter se ofendido com meu ar desconfiado.

– Pode comer tranquila, dona moça – ele pontuou. – Se quisesse matar vocês, não ia ser veneno e sim o meu punhal que ia encontrar o seu bucho.

Tive um arrepio, que se duplicou, ao erguer a cabeça e dar com o único olho de Lampião pregado em mim, sem muita simpatia, por assim dizer.

– Não, eu... jamais... – balbuciei. Como todas as boas desculpas desertaram minha mente, achei melhor apenas baixar a cabeça para o prato e comer com ares satisfeitos. Deus me livre fazer desfeita para aquele povo.

A refeição seguiu em silêncio, porque todos estavam famintos demais para perder tempo com conversas paralelas. Em seguida, os cangaceiros e cangaceiras foram se dispersando, voltando para suas ocupações, para a vigia, indo tirar uma soneca, ou cuidando da limpeza dos utensílios do almoço. Até Perereca dispersou, para alimentar o burrico. Restamos só nós, os emissários do Komintern, e Lampião, com dois jagunços da sua guarda pessoal.

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