Capítulo 25 - Culpa

1.6K 210 170
                                    

Era excruciante, brutal e impiedosa a dor que eu estava sentindo.

Na ambulância, a meio caminho do hospital, Sabrina teve uma parada cardiorrespiratória.

O coração dela parou. Parou.

O processo de decisão sobre a reanimação foi a pior coisa que eu já presenciei em toda a minha vida. Os dois paramédicos discutiam sobre reanimar ou não, já que o choque do desfibrilador poderia matar o bebê.

Mas se o coração dela não voltasse a bater nos próximos segundos, não só ela, como o bebê também morreria. Então a segunda opção seria uma cesariana de emergência. Oito meses, o bebê poderia sobreviver, disseram. Mas a vida dela acabaria naquela maca. Aberta. Ensanguentada. Morta.

Me consultaram:

— Podemos reanimar, mas os riscos... Bom, se você quiser salvar o bebê, precisamos abrir agora.

Na prática, o que ele fez foi colocar em uma das minhas mãos a vida da minha namorada, e na outra a vida do meu filho. Aí disse: você decide. Apenas cinco segundos pensando naquilo fez a minha mente entrar em colapso.

Como? Como eu poderia escolher?

O outro paramédico estava com as pás nas mãos, esperando o sinal verde. E o que falava comigo tinha um olhar de urgência. Eu sabia que não havia tempo para pensar. Nem condições. Nem cabimento. Como eu poderia fazer uma droga de uma escolha daquelas?!

"Reanime", ouvi e depois percebi que aquela voz era a minha. Eles entraram em ação.

Sabrina nunca me perdoaria.

Mas o que mais eu poderia fazer? Optando por reanimar, eu sabia que havia uma chance, ainda que mínima, de o desfibrilador não prejudicar o bebê. Mas se eu optasse pelo parto, a morte dela era certa. E eu nem sequer tinha certeza se ele sobreviveria. Por último, eu não sabia se aqueles paramédicos tinham treinamento para uma cesariana de emergência.

Me senti cair sentado no chão, esgotado, mas eu não via nem sentia as coisas com muita clareza.

Com as costas no metal frio da parede, meus olhos turvos assistiram a uma tentativa de reanimação que falhou.

Na segunda, pegaram batimentos, mas fracos demais para bombear sangue para o resto do corpo. As pontas dos dedos dos pés dela, onde me arrastei para ficar ajoelhado abraçando suas pernas, estavam ficando azuis. De que cor era suposto eu imaginar que o meu filho estava?

A culpa é minha, a culpa é minha, eu repetia, segurando as pernas frias dela enquanto a entubavam. Eu estava perdendo as estribeiras na linha entre razão e a completa insanidade.

Ah... a culpa. Esse sentimento é capaz de destruir uma pessoa. Durante toda a gravidez de Sabrina eu senti uma culpa monumental por ter colocado ela naquela situação. Eu me perguntava, vezes sem conta, como pude ter sido tão estúpido e tão irresponsável. A verdade é que a minha mentalidade, por volta de oito meses atrás, no acampamento, era outra.

Se fosse hoje, eu jamais teria planejado aquele absurdo de dividir barraca com Sabrina. Claro que a minha intenção, e a dela também, era de passarmos um tempo juntos, trocando beijos e só. Que ingênuo você, hein? Ingênuo não, BURRO.

Dois adolescentes, em uma barraca escura, no meio da noite, sozinhos, o resultado disso não era lá uma surpresa.

Eu jamais deveria ter ficado longe dela. Desde o início do relacionamento eu sabia que seria difícil lidar com o temperamento de Sabrina, óbvio que na gravidez tudo ficaria mais intenso. Tudo é mais intenso na gravidez. Então por que infernos eu saí de perto dela? Pouco importava que ela tivesse me mandado ficar longe, era o meu dever cuidar do bem-estar dela.

Você fez isso com ela, minha mente acusava incessantemente, quando chegamos ao hospital e o corpo cor de cera da minha namorada foi carregado às pressas por uma equipe médica.

Sim, eu fiz isso com ela. Não dá para negar que a culpa foi minha. Eu sempre soube dos laudos médicos, das contraindicações. Sabia que a saúde de Sabrina estava comprometida. Eu só nunca imaginei que seu coração poderia falhar.

Tudo isso porque eu perdi o controle das minhas emoções e parti para a violência. Tantas formas de resolver aquilo...

Eu poderia simplesmente ter tirado Sabrina dali, pedido desculpas por tê-la deixado sozinha, e depois abraçá-la com força. Diria a ela que estávamos quase no fim, que logo conheceríamos o pequeno ser chutante, e que quando o víssemos, saberíamos que tudo valeu a pena. Ela iria adorar ouvir isso.

Por que a gente só consegue ver soluções depois que não tem mais volta?

Não tinha mais volta, foi esse pensamento que me fez espremer os olhos com força. Desejei poder voltar no tempo. Talvez eu retornasse ao dia em que fui atrás dela e, assim, decidisse não procurá-la. Eu jamais me arrependi desse dia, mas pagaria o preço de nunca ter tido Sabrina em minha vida se isso garantisse que ela ficaria bem.

— Ela está quase sem oxigênio, doutor — a voz urgente me fez abrir os olhos.

Uma enfermeira passou correndo com um médico, os sapatos fazendo o irritante barulho de apito no piso. O jaleco dele voava para trás, e em meio à corrida, o estetoscópio deslizou de seu pescoço. A enfermeira conseguiu apanhar o equipamento antes de ele cair no chão, o rosto dela era estampado por uma vívida expressão de urgência. Ambos entraram na mesma porta dupla que Sabrina foi carregada poucos minutos antes. Eu reconheceria aquele médico há quilômetros de distância: era o obstetra de Sabrina.

Minha cabeça girava. Eu tinha que fazer alguma coisa. Eu tinha que ajudar Sabrina. Eu tinha que ajudar o meu filho. Eu tinha que fazer alguma coisa. Eu estava enlouquecendo, andando de um lado para o outro, perdido.

Senti o couro cabeludo doer e só então percebi que estava puxando o cabelo. Senti o rosto arder e foi quando notei os machucados da briga. Mas ardeu, não porque estava ferido, mas pelo contato com o sal. O sal ácido do líquido que escorria dos meus olhos.

Como nascem as estrelasWhere stories live. Discover now