Capítulo 9 - Inocente

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A mesa esvaziou-se aos poucos.

Primeiro Felicy. A garota mais velha de cabelos escuros e encaracolados que desciam até o meio das costas, sabe?

Depois, o Sr. Chermont. Veio com uma desculpinha boba sobre uma mensagem que havia acabado de receber de um homem chamado Oliver. Alley o havia observado durante o almoço. Tinha cabelos escuros e usava óculos ovais na ponta do nariz fino. Parecia pronto para abandonar a casa a qualquer momento, com aquela camisa azul-clara debaixo das calças bejes e seus sapatos de bico fino.

Os seguintes foram os gêmeos, as duas crianças de sete anos, Kelvin e Samantha. O menino tinha lindos cabelos loiros encaracolados. A menina tinha madeixas lisas e douradas, também. Saíram juntos.

Por último, a Sra. Chermont. Ela recolheu a louça e a levou à cozinha. Estava de costas para a sala de jantar agora, lavando os pratos.

As moças restantes à mesa eram Alley e a pequena Pilgrin. A menininha fazia barulhinhos de saltos enquanto brincava com seu coelhinho de crochê. Sua outra mão segurava um urso feito ao mesmo estilo. Um tigre também estava por ali, dormindo na milenar rocha chamada "tampo da mesa".

Alley apoiou a cabeça numa mão e observou-a, sentada a duas cadeiras dela. Nem notou que sorria sozinha à visão da criança.

Os olhos da menina reluziram ao perceber que estava sendo observada.

A Sra. Burnington desviou o olhar rapidamente e fingiu que analisava o corte em seu braço.

Ouviu as pernas da cadeira arrastarem o chão e imaginou a criança recolhendo seus brinquedos e fugindo da sala após notar a olhadela da moça desconhecida que haviam acolhido da beira da estrada.

Mas logo depois sentiu dois puxões na blusa e voltou-se para a menina, agarrando os bichinhos de crochê numa mão.

- O Sr. Coelho pode cuidar da sua ferida, Sra. Burnington? Sabe, ele é um ótimo doutor; o melhor do bosque do Roundhay Park.

- Ah, ele é? Então acho que posso deixá-lo cuidar disso para mim.

Pilgrin exibiu o sorriso mais inocente e brilhante que Alley poderia imaginar.

- Mamãe, posso me sentar na mesa?

- Mas é claro que n... - ela se virou e viu que a menina já havia se sentado defronte à Sra. Burnington. - Só hoje, Pilg.

- É verdade o que você disse? Tem coelhos no Roundhay Park? - Alley puxou conversa enquanto a menina cobria seu braço com uma toalhinha rosa como se aquilo fosse a coisa mais empolgante que já havia feito.

- Sim! Mas a mamãe não me deixa entrar no bosque para ver a família do Sr. Coelho, então eu o deixo na beirinha da floresta quando a gente chega lá e o pego de volta quando nós vamos embora.

- E quando vocês vão ao parque?

- Todo domingo, desde que a vovó foi para lá. Papai me disse que íamos hoje, mas eu não sei se vamos mais. Sabe, ele parece bravo. Nós não vamos ao parque quando papai está bravo.

- E por que ele está bravo, Pilgrin?

Ela virou sua cabecinha de lado com um sorriso travesso e parou de amarrar a toalhinha no braço de Alley. Deu uma checada para se certificar de que a Sra. Chermont estava distraída com a louça. 

- Posso te contar um segredo, Sra. Burnington? - perguntou sussurrando e chegando mais perto da moça.

- Pode - respondeu à mesma altura.

- Jura que não conta para ninguém? - ela ergueu seu dedinho.

- Posso contar a um gato que mora comigo?

Pensou um pouquinho, esfregando seu queixo com sua mão, e respondeu:

- Pode.

- Então juro - cruzou seu dedo mínimo com o da menina.

Pilgrin chegou mais perto e diminuiu o volume da voz.

- A mamãe sempre fica brava quando o Sr. Kilt fala com o papai.

- Sr. Kilt?

- Oliver Kilt. Ele trabalha com o papai, mas mamãe diz para ficarmos longe dele. E, sempre que o papai chega muito tarde e está fedendo, mamãe briga com ele, porque sabe que saiu com o Sr. Kilt. Ela também não gosta quando ele recebe mensagens do Sr. Kilt, porque também sabe que isso significa que ele fará uma visita. Agora o papai também não gosta das visitas do Sr. Kilt ou de suas mensagens, porque fica muito estressado com mamãe.

- E o que você acha do Sr. Kilt?

- O Sr. Kilt? Ah, ele é meio estranho e diz umas bobagens que eu não entendo. Eu perguntei a Felicy o que ele estava dizendo, mas ela não me respondeu. Nunca responde. Sempre volta para o quarto quando ele está aqui. Mas eu descobri uma coisa.

- Ah, é?

- Sim. Vi Samantha bisbilhotando a conversa que mamãe estava tendo com Felicy. Elas gritavam bem alto. E ela me contou sobre o quê conversavam.

- E?

- Ela disse que mamãe estava falando sobre o Sr. Kilt com a Felicy. Sabe, o papai e a mamãe são casados há dez anos... Eu... Eu acho que o Sr. Kilt é o papai da Felicy. Mas papai sabe disso, e mesmo assim ele se casou com a mamãe, então eles se amam muito, não é?

Aquilo não era uma pergunta retórica. Por mais que soasse como uma, não era.

Não. Pilgrin queria se assegurar daquilo, porque, no fundo, não tinha certeza alguma de qualquer coisa que havia dito. Nenhuma certeza.

- Sim.

A menina soltou um sorrisinho de alívio.

- Já amou alguém que nem eles, Sra. Burnington?

Alley ergueu a cabeça bruscamente. Havia sido pega totalmente desprevenida por aquela pergunta.

- Ah, sim. Sim, já amei como eles.

- É mesmo? - a menina empolgou-se. - E tiveram um casamento bonito? Cheio de rendas brancas e pérolas e vestidos e...

- Sim, mas não tivemos rendas ou pérolas ou vestidos. Ah, sim, tinha um vestido, mas apenas um. Nós nos casamos à beira de um lago. Eu vestia um lindo vestido. Não era daqueles pesados, cheios de flores bordadas e rendas artesanais. Era apenas um vestido branco daqueles que usamos no verão. Ele que o havia dado a mim. Não calçava sapatos ou usava bijuterias caras. E ele estava... majestoso. Usava um terno azul-marinho, camisa e sapatos brancos.

- E as alianças? - perguntou, segurando a borda da mesa com as mãozinhas, balançando as pernas para frente e para trás.

- Ah, não tínhamos dinheiro para alianças. As nossas eram feitas de grama retorcida. Já se foram há muito tempo. Tempo demais. Mas ficávamos olhando outras alianças. Parados à frente da Van's Jewelry, com os narizes grudados na vitrine... Número 184 do catálogo, era a que nós queríamos. E, depois de ficar horas em frente àquela loja, íamos ao Roundhay Park e nos sentávamos sob uma faia-europeia às margens do Upper Lake.

- Como era o nome dele, Sra. Burnington?

Alley demorou um pouco para responder, como se as palavras ficassem agarradas em sua garganta. Como se lutassem a fim de voltar a um sono profundo do qual, ela sabia, não acordariam mais. Como se soubessem que se referiam a algo que não existia mais.

Mas, quando saíram, soaram como um suspiro de alívio e alegria. Como luz do sol a quem tem o corpo esfriado por coisas que já se passaram, mas que nunca serão esquecidas. Ah, como aquele nome soava bem.

- Alfred Burnington... Meu doce Alfred.


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O Lago de AlleykeTempat cerita menjadi hidup. Temukan sekarang