- Olá, Alleyke, está tudo bem? - a Sra. Chermont perguntou ao vê-la através da porta aberta de seu quarto, terminando de subir até o patamar das escadas.
- Claro, Sra. Chermont - foi até o batente da porta. A moça terminava de calçar Pilgrin. Ainda estava vestida com as roupas sujas de terra. A pequena menina usava um vestido bonito e tinha os cachinhos dourados bem ajeitados com uma tiara branca.
- Sabe, Alleyke, nós temos um jantar importante hoje à noite. Será que gostaria de vir também?
- Um... jantar importante? Olha, Sra. Chermont, não sei se já me viu direito, mas não sou do tipo de pessoa que se espera em eventos de classe.
- E eu por acaso sou? - olhou para ela de baixo para cima, afivelando os sapatos de Pilgrin. Com aquele vestido sujo de terra e botas puídas, nem Alley podia ver uma dama nela. Sorriu sob a expressão encabulada da moça e voltou a afivelar os sapatos da filha.
- Mas não tenho roupas para vestir.
- Sem problemas; algum vestido antigo de Felicy deve caber em você. Vá falar com ela.
- Com Felicy?
- Não se preocupe; adolescentes não mordem, eu também achava que o faziam - riu.
- Claro que não - Alley sorriu e deixou o quarto.
O aposento de Felicy podia ser distinguido pela música alta que tocava lá, abafada pela porta bem trancada. Ficava no fim do corredor, do lado oposto ao banheiro.
A Sra. Burnington bateu duas vezes na porta.
Demorou algum tempo, mas o volume da música diminuiu e passos leves vieram à porta.
- Sim? - Felicy perguntou. Seus olhos estavam um pouco avermelhados; um vermelho suave que apenas alguém que passou anos sem ver nada além de cores cinzentas era capaz de distinguir.
- Sua mãe disse que poderia me arranjar algo para vestir; sabe, para o jantar.
- Ah, claro - a garota fez que sim com a cabeça. - Acho que posso achar alguma coisa do seu tamanho.
Felicy entrou novamente no quarto, deixando a porta entreaberta.
- Uh... posso entrar?
- Sim, à vontade. Mas feche a porta, por favor.
E Alley entrou.
E, ao virar-se após fechar a porta, deparou-se com, provavelmente, uma das coisas mais lindas que havia visto.
O teto do quarto havia sido totalmente pintado de preto. Pouco mais da metade, porém, era preenchida com maravilhosas pinturas do universo. As escalas de roxo e azul se entrelaçavam entre os corpos celestes representados. Entre o armário grande, um biombo e a parede do quarto, descansava uma escada de mão, uma paleta de tinta, um copo de pincéis e vários potinhos de tintas roxas, azuis e cinzas. A escrivaninha do quarto estava abarrotada de papéis e lápis. Ao lado da cama, revistas sobre arte e ciências estavam empilhadas sob o aparelho de som que, agora, tocava suas músicas em volume baixo.
- Você que fez? - Alley perguntou, sem tirar os olhos do teto.
- O quê? Ah, sim. - Respondeu, desviando o olhar do armário e avaliando sua própria obra inacabada. - Preciso de tintas novas; amarelo e laranja. Não posso terminar o centro sem elas. É a Via Láctea, está vendo? - A garota andou até Alley e parou ao seu lado. Então, foi apontando os braços da galáxia. - O Braço de Cisne, de Perseu, de Orion, de Sagitário e de Centauro; ou melhor, onde o Braço de Centauro e de Cisne vão ficar. E, no centro, vou pintar Sagittarius A.
- E como sabe que tudo isso está lá? Só por quê alguém disse que está?
- Ah, vamos lá, você não tem cara de conspiradora - riu.
- E não sou, só estou curiosa sobre a resposta - sorriu para ela.
- Eu... acho que acredito porque de um bando de nerds de óculos que passam todos os dias analisando imagens de satélites disse - retribuiu o sorriso. - Certo, de volta às roupas.
Alley esperou algum tempo sentada sobre a cama de Felicy enquanto a garota separava as peças.
- Espero que sirvam; são os menores que tenho - disse, erguendo um vestido azul-claro e sapatilhas brancas.
- Obrigada - respondeu pegando as roupas e dirigindo-se ao biombo.
Alley ouviu a música do aparelho de som aumentar ao ir para trás do anteparo; nada comparado ao estrondoso som que fazia antes.
Despiu-se da camisa de borboleta e das calças de moletom.
Abriu os botões nas costas do vestido azul com cuidado. Passou-o por cima da cabeça e deixou a roupa deslizar até encaixar-se em seu corpo. E coube! No espelho encostado à parede, ela se viu e sorriu. Estava bonita, e aquela roupa a fazia lembrar de seu casamento.
Sentou-se num banquinho e afivelou as sapatilhas brancas. Estavam brilhosas como se houvessem sido compradas há pouco tempo.
Saiu de trás do biombo e, naquele momento, qualquer coisa que tivesse o privilégio de vê-la saberia que não pertencia àquele mundo, inclusive a garota que a esperava sentada na cama, porque nada ali poderia ser tão belo quanto aquela criatura delicada.
- Ficou... ótimo - Felicy sorriu.
- Obrigada - retribuiu o gesto.
- Venha cá; farei um bom penteado.
Alley hesitou um pouco. Poderia ter hesitado pois sabia que seus cabelos eram finos como teias de aranha. Pois, ao tocá-los, aquela menina saberia que fios tão finos eram impossíveis naquele mundo. Mas não foi por isso que hesitou.
Hesitou pois a única pessoa que já havia tocado seus cabelos havia sido Alfred, e ela ainda se lembrava do seu toque cuidadoso.
Contudo, acabou por se sentar à penteadeira do quarto.
E, enquanto a menina ajeitava-a, pensou.
Talvez sua estranha afinidade e empatia por Felicy viesse de um sentimento que compartilhavam. Um sentimento de deslocamento e solidão. Alley não era dali. E aquela menina também não; ou pelo menos não queria ser.
Pôde ver, pelo espelho da penteadeira, o reflexo da pintura inacabada no teto do quarto.
Após uns quinze minutos, Felicy disse:
- Feito.
Alley, distraída, ergueu a cabeça para ver seu reflexo.
Sabe, ela mal se lembrava da última vez que vira seus cabelos soltos sem o impulso de refazer seu coque o quanto antes. Bem, digamos que tenha sido a primeira vez.
Ao invés da infinidade de fios flutuando ao redor de sua cabeça, viu cabelos ondulados que desciam até os ombros e emolduravam seu rosto. Não sabia exatamente como Felicy havia feito aquilo, mas fora um ótimo trabalho.
- Tem orelhas furadas?
- Uh... não.
- Certo; não faz mal.
A garota veio segurando um par de brincos de pressão. Eram brancos e brilhosos.
Pôs um em cada orelha de Alley.
- Uma amiga os esqueceu aqui; não se preocupe: ela não vai sentir falta. E ficam bem melhores em você. - Riu. - Se não se incomoda, tenho de me arrumar também.
- Ah, claro. Obrigada - disse antes de se retirar do quarto.
Segundo Alfred Burnington, as mais belas flores podem ter os piores perfumes, e as mais simples folhas podem ter os mais agradáveis aromas. Sinceramente, Alley nunca o havia levado muito a sério.
A partir de hoje, levaria.
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O Lago de Alleyke
FantasyAlleyke vive em um mundo paralelo ao nosso, no Lago de Alleyke; uma cópia exata do Lago de Ekyella, em Leeds, na Inglaterra. Tudo estava bem até que precisa embarcar em uma jornada pelo nosso mundo em busca de um diário onde estão contidas informaçõ...