Capítulo 13 - Obra de Universo

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- Olá, Alleyke, está tudo bem? - a Sra. Chermont perguntou ao vê-la através da porta aberta de seu quarto, terminando de subir até o patamar das escadas.

- Claro, Sra. Chermont - foi até o batente da porta. A moça terminava de calçar Pilgrin. Ainda estava vestida com as roupas sujas de terra. A pequena menina usava um vestido bonito e tinha os cachinhos dourados bem ajeitados com uma tiara branca.

- Sabe, Alleyke, nós temos um jantar importante hoje à noite. Será que gostaria de vir também?

- Um... jantar importante? Olha, Sra. Chermont, não sei se já me viu direito, mas não sou do tipo de pessoa que se espera em eventos de classe.

- E eu por acaso sou? - olhou para ela de baixo para cima, afivelando os sapatos de Pilgrin. Com aquele vestido sujo de terra e botas puídas, nem Alley podia ver uma dama nela. Sorriu sob a expressão encabulada da moça e voltou a afivelar os sapatos da filha.

- Mas não tenho roupas para vestir.

- Sem problemas; algum vestido antigo de Felicy deve caber em você. Vá falar com ela.

- Com Felicy?

- Não se preocupe; adolescentes não mordem, eu também achava que o faziam - riu.

- Claro que não - Alley sorriu e deixou o quarto.

O aposento de Felicy podia ser distinguido pela música alta que tocava lá, abafada pela porta bem trancada. Ficava no fim do corredor, do lado oposto ao banheiro.

A Sra. Burnington bateu duas vezes na porta.

Demorou algum tempo, mas o volume da música diminuiu e passos leves vieram à porta.

- Sim? - Felicy perguntou. Seus olhos estavam um pouco avermelhados; um vermelho suave que apenas alguém que passou anos sem ver nada além de cores cinzentas era capaz de distinguir.

- Sua mãe disse que poderia me arranjar algo para vestir; sabe, para o jantar.

- Ah, claro - a garota fez que sim com a cabeça. - Acho que posso achar alguma coisa do seu tamanho.

Felicy entrou novamente no quarto, deixando a porta entreaberta.

- Uh... posso entrar?

- Sim, à vontade. Mas feche a porta, por favor.

E Alley entrou.

E, ao virar-se após fechar a porta, deparou-se com, provavelmente, uma das coisas mais lindas que havia visto.

O teto do quarto havia sido totalmente pintado de preto. Pouco mais da metade, porém, era preenchida com maravilhosas pinturas do universo. As escalas de roxo e azul se entrelaçavam entre os corpos celestes representados. Entre o armário grande, um biombo e a parede do quarto, descansava uma escada de mão, uma paleta de tinta, um copo de pincéis e vários potinhos de tintas roxas, azuis e cinzas. A escrivaninha do quarto estava abarrotada de papéis e lápis. Ao lado da cama, revistas sobre arte e ciências estavam empilhadas sob o aparelho de som que, agora, tocava suas músicas em volume baixo.

- Você que fez? - Alley perguntou, sem tirar os olhos do teto.

- O quê? Ah, sim. - Respondeu, desviando o olhar do armário e avaliando sua própria obra inacabada. - Preciso de tintas novas; amarelo e laranja. Não posso terminar o centro sem elas. É a Via Láctea, está vendo? - A garota andou até Alley e parou ao seu lado. Então, foi apontando os braços da galáxia. - O Braço de Cisne, de Perseu, de Orion, de Sagitário e de Centauro; ou melhor, onde o Braço de Centauro e de Cisne vão ficar. E, no centro, vou pintar Sagittarius A.

- E como sabe que tudo isso está lá? Só por quê alguém disse que está?

- Ah, vamos lá, você não tem cara de conspiradora - riu.

- E não sou, só estou curiosa sobre a resposta - sorriu para ela.

- Eu... acho que acredito porque de um bando de nerds de óculos que passam todos os dias analisando imagens de satélites disse - retribuiu o sorriso. - Certo, de volta às roupas.

Alley esperou algum tempo sentada sobre a cama de Felicy enquanto a garota separava as peças.

- Espero que sirvam; são os menores que tenho - disse, erguendo um vestido azul-claro e sapatilhas brancas.

- Obrigada - respondeu pegando as roupas e dirigindo-se ao biombo.

Alley ouviu a música do aparelho de som aumentar ao ir para trás do anteparo; nada comparado ao estrondoso som que fazia antes.

Despiu-se da camisa de borboleta e das calças de moletom.

Abriu os botões nas costas do vestido azul com cuidado. Passou-o por cima da cabeça e deixou a roupa deslizar até encaixar-se em seu corpo. E coube! No espelho encostado à parede, ela se viu e sorriu. Estava bonita, e aquela roupa a fazia lembrar de seu casamento.

Sentou-se num banquinho e afivelou as sapatilhas brancas. Estavam brilhosas como se houvessem sido compradas há pouco tempo.

Saiu de trás do biombo e, naquele momento, qualquer coisa que tivesse o privilégio de vê-la saberia que não pertencia àquele mundo, inclusive a garota que a esperava sentada na cama, porque nada ali poderia ser tão belo quanto aquela criatura delicada.

- Ficou... ótimo - Felicy sorriu.

- Obrigada - retribuiu o gesto.

- Venha cá; farei um bom penteado.

Alley hesitou um pouco. Poderia ter hesitado pois sabia que seus cabelos eram finos como teias de aranha. Pois, ao tocá-los, aquela menina saberia que fios tão finos eram impossíveis naquele mundo. Mas não foi por isso que hesitou.

Hesitou pois a única pessoa que já havia tocado seus cabelos havia sido Alfred, e ela ainda se lembrava do seu toque cuidadoso.

Contudo, acabou por se sentar à penteadeira do quarto.

E, enquanto a menina ajeitava-a, pensou.

Talvez sua estranha afinidade e empatia por Felicy viesse de um sentimento que compartilhavam. Um sentimento de deslocamento e solidão. Alley não era dali. E aquela menina também não; ou pelo menos não queria ser.

Pôde ver, pelo espelho da penteadeira, o reflexo da pintura inacabada no teto do quarto.

Após uns quinze minutos, Felicy disse:

- Feito.

Alley, distraída, ergueu a cabeça para ver seu reflexo.

Sabe, ela mal se lembrava da última vez que vira seus cabelos soltos sem o impulso de refazer seu coque o quanto antes. Bem, digamos que tenha sido a primeira vez.

Ao invés da infinidade de fios flutuando ao redor de sua cabeça, viu cabelos ondulados que desciam até os ombros e emolduravam seu rosto. Não sabia exatamente como Felicy havia feito aquilo, mas fora um ótimo trabalho.

- Tem orelhas furadas?

- Uh... não.

- Certo; não faz mal.

A garota veio segurando um par de brincos de pressão. Eram brancos e brilhosos.

Pôs um em cada orelha de Alley.

- Uma amiga os esqueceu aqui; não se preocupe: ela não vai sentir falta. E ficam bem melhores em você. - Riu. - Se não se incomoda, tenho de me arrumar também.

- Ah, claro. Obrigada - disse antes de se retirar do quarto.

Segundo Alfred Burnington, as mais belas flores podem ter os piores perfumes, e as mais simples folhas podem ter os mais agradáveis aromas. Sinceramente, Alley nunca o havia levado muito a sério.

A partir de hoje, levaria.


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O Lago de AlleykeWhere stories live. Discover now