Lembranças

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Respirei fundo e tomei alguns goles seguidos do milk-shake. Eu não havia apenas dividido uma grande parte da minha vida com Steve, mas algo que me doía até hoje. Já fazia tempo que eu não dizia o nome de Douglas Christensen em voz alta, mas depois de contar tudo me senti até um pouco mais leve.

Ou apenas passando por cima de tudo como um trator.

Agora Steve me parecia tenso, ele deu um pequeno gole em seu milk-shake esquisito e começou a falar:

- Bom, minha mãe sofreu um acidente quando estava indo me buscar no colégio. - ele encarou a mesa e depois meus olhos. - Foi desesperador não saber de quase nada porque eu só tinha seis anos. Meu pai até era legal quando eu era criança. Quando ela ainda era viva.

Ele sorria fraco para disfarçar.

- E como ela era? - perguntei.

- Iluminada. - ele sorriu, mas se conteve. - Gostava de ajudar as pessoas. Era muito amorosa e sempre sorridente. Ela pintava quadros. Lembro de sempre vê-la pintando e então eu ia até ela e pedia para ajudar e no final acabava todo sujo de tinta.

- Imagino você todo lerdinho jogando tinta na casa inteira. - comecei a rir e dessa vez ele não reclamou, apenas riu junto.

- Cala boca, eu estava falando. - ele ainda ria.

Fingi fechar a boca com um zíper e ele continuou:

- Isso tudo foi em Miami, quando morávamos lá. Mas nos mudamos para Nova York pouco depois.

- Então você não nasceu aqui?

- Não, mas me sinto como se tivesse nascido. Acho até que gosto mais daqui. - Steve respirou fundo. - Tudo mudou depois que ela se foi. Eu era criança, mas consigo me lembrar do dia do acidente com detalhes. Parecia que ninguém me buscaria na escola nunca mais, até Carmen aparecer com o motorista e me levar para casa.

"Quando cheguei, todo mundo ficou me olhando diferente e Carmen me levou até o ateliê da minha mãe. Meu pai estava lá, sentado no chão, de cabeça baixa e com alguns quadros no chão, ao seu lado. Estava uma bagunça, como se ele tivesse jogado tudo no chão, as telas, as tintas, os pincéis. Foi horrível. Ele não parecia meu pai. Lembro dele me dizendo que ela havia virado uma estrela junto com as outras no céu.

Não entendi direito no começo e nem chorei tanto, mas depois foi ficando pior. Quando viemos para Nova York, tudo já estava bem pior. Meu pai era outra pessoa, não era mais engraçado e sorridente como na presença da minha mãe. Ele focou toda sua atenção no trabalho e só".

- Como assim ?

Ele deu de ombros.

- Meu pai se fechou totalmente e aqueles poucos sorrisos que você viu, sinceramente, me assustam um pouco. No final é tudo encenação para manter a imagem, sabe? - Steve deu um sorriso triste.

- Ele teve um motivo sério. Quem sabe ele não muda?

Steve riu, mas foi muito mais triste do que antes. Nele não havia esperança alguma de que o pai mudasse.

- Não, Samantha. Ele não vai mudar.

- E, por acaso, você sabe de tudo agora? - forcei um sorriso.

- Mas nem pense que você sabe de tudo. Pode até acertar sobre o comportamento das pessoas e tudo mais, mas não sabe de tudo.

- Acredite no que quiser, mas eu acho que seu pai ainda vai te surpreender. - deitei o corpo até tocar o encosto do banco. Vendo que Steve relutaria quanto ao pai, resolvi mudar de assunto: - Acho que já chega de assuntos desse tipo por hoje.

O AcordoWhere stories live. Discover now