Capítulo 49 - Tarde Explosiva

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– Também acho melhor.

O tom de Astrakhanov não continha nenhum traço de rancor, mágoa ou irritação. Ele acatara a bronca de Gruber como a ordem de um superior hierárquico, e simplesmente obedecera. A rotina do exército certamente não se revestia de gentileza, e pelo jeito o havia vacinado contra a ofensa fácil.

– Aqui está mais agradável, de qualquer forma – o tenente deu de ombros. – Se não somos necessários, vamos aproveitar a praia – e se voltou para mim com um sorriso. – Ponha-se à vontade também – recomendou, apontando para os meus pés.

Eu segui o conselho e tirei meus sapatos, depositando-os ao meu lado. Não estava usando meias-calças hoje, justamente porque viríamos à praia, e a areia estragaria o acessório. Então pude enfiar os pés na areia geladinha da parte que o mar alcançava na maré alta. Deixei escapar um gemido de satisfação quando meus dedos espremidos do calçado foram envolvidos pela massa bege, como que numa massagem natural. Astrakhanov riu. Ergueu a cabeça e sorveu o ar profundamente.

– Passamos tanto tempo sem nada para fazer na cidade – ele disse, de repente – podíamos ir à praia com mais frequência.

– Podemos – eu concordei, encolhendo os ombros. – Embora eu espere que a gente tenha cada vez menos tempo ocioso.

– Sim, especialmente se as coisas começarem a caminhar com aquela Aliança – Astrakhanov disse. – Por isso mesmo devemos aproveitar agora – adicionou, e, inesperadamente, ele se deitou, com a cabeça no meu colo, e os braços na nuca.

Eu ergui uma sobrancelha, para indagar que raios ele estava fazendo.

– Não seja chata, Anita – ele protestou, alcançando a minha mão e a trazendo para seus cabelos alinhados. – Faça um agrado no seu maridinho.

Eu girei os olhos para o alto, mas não retirei a mão dos cabelos dele. Eram macios, passada a camada de brilhantina, e formariam cachos nas pontas, se ele não alisasse as mechas com o pente. O tenente cerrou os olhos, senti que ele amolecia, pensei que fosse dormir. Engraçado um homem daquele tamanho se comportando como um filhote de gato.

– Eu só conheci a praia depois de adulto, sabia? – ele comentou, após um momento.

– Sério? – questionei, surpresa.

– Uhum – Astrakhanov confirmou, num bocejo. – Não há muito litoral no meu país, proporcionalmente ao território, e eu sempre morei nas proximidades de Moscou. Vi o mar pela primeira vez quando fui servir o exército na Crimeia.

– Nossa. Onde eu nasci também não tinha praia perto, mas quando meu pai podia pegar férias, ele e minha mãe insistiam em nos levar para Santos. Minha mãe gosta muito do mar. Eu também gosto. Do mar e do céu. Não tem nada que represente melhor a imensidão.

– Ah, tem – discordou o tenente.

– Tem, é? – duvidei. – O quê?

– Os campos.

O silêncio caiu entre nós, quebrado apenas pelo marulho das ondas, que protestavam contra a afirmação de Astrakhanov, reafirmando sua preeminência nos símbolos da vastidão. "Campos! O que são campos perto do nosso contínuo movimento azul-esverdeado?", elas pareciam murmurar. E eu concordava com elas, até, pois os campos você podia dividir, semeá-los de variedades. Muito embora aqueles que eu conhecia não passassem mesmo de vastidões cobertas de café.

Shaganê, ty moya Shaganê! – Astrakhanov exclamou então, em russo, me sobressaltando para fora do meu devaneio, quando eu pensava que ele tinha adormecido. – Por eu ser do norte, talvez, eu estou pronto a te contar sobre os campos, sobre o centeio ondulando sob a lua, Shaganê, minha Shaganê.

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