– Também acho melhor.
O tom de Astrakhanov não continha nenhum traço de rancor, mágoa ou irritação. Ele acatara a bronca de Gruber como a ordem de um superior hierárquico, e simplesmente obedecera. A rotina do exército certamente não se revestia de gentileza, e pelo jeito o havia vacinado contra a ofensa fácil.
– Aqui está mais agradável, de qualquer forma – o tenente deu de ombros. – Se não somos necessários, vamos aproveitar a praia – e se voltou para mim com um sorriso. – Ponha-se à vontade também – recomendou, apontando para os meus pés.
Eu segui o conselho e tirei meus sapatos, depositando-os ao meu lado. Não estava usando meias-calças hoje, justamente porque viríamos à praia, e a areia estragaria o acessório. Então pude enfiar os pés na areia geladinha da parte que o mar alcançava na maré alta. Deixei escapar um gemido de satisfação quando meus dedos espremidos do calçado foram envolvidos pela massa bege, como que numa massagem natural. Astrakhanov riu. Ergueu a cabeça e sorveu o ar profundamente.
– Passamos tanto tempo sem nada para fazer na cidade – ele disse, de repente – podíamos ir à praia com mais frequência.
– Podemos – eu concordei, encolhendo os ombros. – Embora eu espere que a gente tenha cada vez menos tempo ocioso.
– Sim, especialmente se as coisas começarem a caminhar com aquela Aliança – Astrakhanov disse. – Por isso mesmo devemos aproveitar agora – adicionou, e, inesperadamente, ele se deitou, com a cabeça no meu colo, e os braços na nuca.
Eu ergui uma sobrancelha, para indagar que raios ele estava fazendo.
– Não seja chata, Anita – ele protestou, alcançando a minha mão e a trazendo para seus cabelos alinhados. – Faça um agrado no seu maridinho.
Eu girei os olhos para o alto, mas não retirei a mão dos cabelos dele. Eram macios, passada a camada de brilhantina, e formariam cachos nas pontas, se ele não alisasse as mechas com o pente. O tenente cerrou os olhos, senti que ele amolecia, pensei que fosse dormir. Engraçado um homem daquele tamanho se comportando como um filhote de gato.
– Eu só conheci a praia depois de adulto, sabia? – ele comentou, após um momento.
– Sério? – questionei, surpresa.
– Uhum – Astrakhanov confirmou, num bocejo. – Não há muito litoral no meu país, proporcionalmente ao território, e eu sempre morei nas proximidades de Moscou. Vi o mar pela primeira vez quando fui servir o exército na Crimeia.
– Nossa. Onde eu nasci também não tinha praia perto, mas quando meu pai podia pegar férias, ele e minha mãe insistiam em nos levar para Santos. Minha mãe gosta muito do mar. Eu também gosto. Do mar e do céu. Não tem nada que represente melhor a imensidão.
– Ah, tem – discordou o tenente.
– Tem, é? – duvidei. – O quê?
– Os campos.
O silêncio caiu entre nós, quebrado apenas pelo marulho das ondas, que protestavam contra a afirmação de Astrakhanov, reafirmando sua preeminência nos símbolos da vastidão. "Campos! O que são campos perto do nosso contínuo movimento azul-esverdeado?", elas pareciam murmurar. E eu concordava com elas, até, pois os campos você podia dividir, semeá-los de variedades. Muito embora aqueles que eu conhecia não passassem mesmo de vastidões cobertas de café.
– Shaganê, ty moya Shaganê! – Astrakhanov exclamou então, em russo, me sobressaltando para fora do meu devaneio, quando eu pensava que ele tinha adormecido. – Por eu ser do norte, talvez, eu estou pronto a te contar sobre os campos, sobre o centeio ondulando sob a lua, Shaganê, minha Shaganê.
VOCÊ ESTÁ LENDO
Dias Vermelhos
Historical FictionEm 1933, o mundo estava como o conhecemos hoje: politicamente dividido, flagelado por guerras e recuperando-se de uma crise econômica sem precedentes. Os ânimos estavam inflamados ao ponto da selvageria. Maria Clara logo escolheu seu lado...
Capítulo 49 - Tarde Explosiva
Começar do início