Capítulo 48 - A Aliança Nacional Libertadora

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Eu dissera a ele, brincando, que o essencial era saber falar "preparar, apontar, fogo", mas valorizei a dedicação à tarefa. Os Gruber também precisavam de umas lições de reforço da língua, na minha opinião; eu conseguia entendê-los, com algum esforço, porém seu português era muito pior que o do tenente. O de Altobelli estava mais para portunhol, mas isso não causava problemas de comunicação. Berger, por sua vez, se expressava melhor, talvez por já estar no continente havia algum tempo, segundo eu tinha entendido.

Enquanto Astrakhanov estudava português, eu lia todos os jornais que conseguia adquirir com nosso orçamento limitado, inclusive anteriores à nossa chegada à cidade, e permanecia antenada ao rádio, principalmente à noite, sedenta por notícias que me ajudassem a definir com mais precisão em que pé estávamos, no front político, econômico e social.

Às vezes sintonizava em uma estação que tocava jazz, também, que ninguém é de ferro.

Ao lado de anúncios de elixires milagrosos, tinturas de cabelo e urologistas, dividindo espaço com relatos de sequestros e assassinatos, o quadro político do país se delineava diante dos meus olhos, retratado de muitas perspectivas. A verdade é que as coisas não tinham se alterado tanto desde minha partida para a União Soviética, mas tudo tinha se intensificado: as disputas e intervenções nos governos estaduais, as balbúrdias das milícias integralistas, as greves, muitas prisões, a insatisfação popular, a subserviência ao Imperialismo, com nossas contas públicas sendo mandadas para análise nos Estados Unidos.

Foi por meio dessas leituras e noticiários de rádio que fiquei entendendo melhor a tal Aliança Nacional Libertadora, sobre a qual ouvira rumores ainda na União Soviética. O movimento estava ganhando vulto, ao que parecia, e, consequentemente, já não podia ser ignorado pelos periódicos governistas voltados às grandes massas. A estratégia do silêncio estava cedendo lugar, progressivamente, à hostilidade aberta.

Descobri também que, no dia mesmo da nossa chegada ao Brasil a Aliança promovera um comício de protesto contra uma tétrica lei que o governo estava arquitetando nos bastidores, segundo explicava um manifesto do sindicato dos bancários:

[...] Trata-se da chamada "Lei de Segurança Nacional", a que o povo brasileiro já cognominou "Lei Monstro". Seu texto ainda não foi dado à publicidade. Sabe-se, entretanto, que ela virá destruir de uma vez a relativa liberdade que com tanto sacrifício conquistamos e temos mantido. A denominação dada pelo povo bem patenteia a repulsa por essa lei, que virá anular as suas menores conquistas.

Todos os abusos do poder, até agora sujeitos à censura da opinião pública, passarão a revestir-se de caráter legal. Entraremos num estado de sítio permanente. Desaparecerá a liberdade de crítica. Deixará de existir o direito de reunião. Serão fechados os jornais que discordarem do governo e denunciarem os desmandos das autoridades: os jornalistas independentes serão impedidos de exercer sua profissão e deportados para onde convier ao governo. Serão perseguidos todos os partidos políticos que divergirem dos detentores do poder. As prisões voltarão a encher-se de vítimas da arbitrariedade governamental. A liberdade de cátedra passará a ser letra morta: todas as explicações científicas terão de moldar-se aos interesses oficiais. As próprias livrarias só venderão obras que forem do agrado do governo. [...]

Como que confirmando os sinistros prognósticos dos bancários, a mesma notícia trazia um relato da libertação de pessoas do Partido Socialista, presas enquanto realizavam uma reunião. Dentro da sede. Meu sangue ferveu lendo aquela notícia, e tive vontade de rasgar o jornal. Consegui me pôr sob controle, porém, respirando fundo e ponderando que, se nossos inimigos já estavam se desesperando daquele jeito, a ponto de não mais esconder suas garras da população, significava que as coisas do nosso lado estavam caminhando.

Dias VermelhosWhere stories live. Discover now