Capítulo 44 - Chapéu Azul

Začít od začátku
                                    

Sentei-me na cama e girei rapidamente, tateando com os pés em busca das sandálias. Grunhi.

Ouvi na ELI, de um dos colegas orientais, uma história sobre um homem que sonhou que era borboleta e depois não sabia se ele era borboleta sonhando que era homem ou vice-versa. Queria estar na mesma situação que aquele homem, mas não: eu sabia perfeitamente o que era verdade e o que era sonho, pois não era a primeira vez que aquele sonho – ou um semelhante – me visitava.

Sobretudo após escutar aquele jazz.

"Um mês", pensei, enquanto lavava o rosto, no banheiro pegado ao quarto. Mais de um mês, na verdade, se contássemos toda a viagem e os três dias que já aguardávamos no hotel. Encarei-me no espelho:

— Já não era para você ter superado? — disse, irritada, para o meu reflexo.

Eu terminei de me arrumar, e, quando me juntei a Astrakhanov no buffet de café da manhã, já tinha o controle da minha mente, envergonhada das suas escapadas noturnas. Um resquício de mau-humor sempre ficava para trás depois de um episódio desses, e o pobre Astrakhanov colhia seus frutos, já que era meu primeiro contato humano matinal. Dessa vez, minha implicância achou fundamento, porém: ele não tinha conseguido confirmar com o intermediário o apontamento, então é possível que fossemos em vão ao local de encontro, e que o tal Harry Berger ainda nem estivesse ciente da nossa chegada.

— Ele não deu as caras... — rosnou Astrakhanov, entredentes — ...querida — adicionou, ao perceber o olhar do casal de meia-idade na mesa ao lado sobre nós. — O médico não apareceu, o que eu podia fazer?

— Não sei, desse um jeito, procurasse outro médico — respondi. — Às vezes lamento ter me casado com um estrangeiro, aqui no Brasil somos mais criativos para enfrentar imprevistos — alfinetei.

O louro estreitou os olhos para mim por trás dos óculos falsos, e suspirou fundo.

— Iremos ao consultório hoje mesmo assim — ele decidiu. — Se o doutor não nos receber, depois pensamos no que faremos.

— Não acha que um de nós deve ficar no hotel, para o caso de... alguém aparecer? — eu perguntei, séria. Astrakhanov ponderou.

— Está bem — concordou. — Você fica. Caso o médico me atenda, eu mando recado por alguém ou ligo para cá, para dizer onde você deve nos encontrar. Se eu não voltar até a noite, já sabe que ocorreu algum imprevisto — e com um olhar ele completou a frase, indicando que eu devia seguir o protocolo, ou seja, dar no pé e procurar um esconderijo.

— Por que você vai? É o meu problema, eu que deveria comparecer à consulta — contestei. Astrakhanov girou os olhos.

— Você sabe muito bem, querida, que eu sou responsável por protegê-la... de qualquer incômodo — ele replicou.

E eu apenas fiz uma careta. Era verdade. Se por um lado a agente do Komintern era eu, logo, a mim é que interessava fazer contato com Berger, Astrakhanov fora recrutado justamente para cuidar da minha segurança, o que significava que a ele cabia ir na frente verificar o terreno em busca de minas escondidas, antes que eu pisasse e elas me mandassem pelos ares.

Substitua as minas por policiais e a metáfora assentava perfeitamente à nossa situação.

Decidida a questão, voltamos a nos concentrar em nosso café da manhã, e quando Astrakhanov já estava se levantando para se dirigir ao local do encontro, a dona da pensão – uma senhora de uns sessenta anos trajando um vestido preto e com os ombros envoltos num xale, apesar do calor – se aproximou da nossa mesa e perguntou se não poderia nos oferecer uma sobremesa. Astrakhanov recusou e foi saindo, mas a mulher pediu para ele esperar, e algo nos olhos dela me fez reforçar o pedido. Ela correu para o balcão da cantina, e voltou com dois bolinhos numa bandeja, além de um papel, que disse ser a conta.

Dias VermelhosKde žijí příběhy. Začni objevovat