Capítulo 42 - Naturalização

Start from the beginning
                                    

5. viajar com o mesmo passaporte para a URSS pelo itinerário indicado pelo representante do OMS;

6. tenho conhecimento de que não tenho direito de comparecer com esse passaporte a consulados estrangeiros sem a permissão do representante do OMS.

Reconheci o texto. Havia assinado um termo de compromisso idêntico – tirando a parte dos itinerários – na Escola Leninista Internacional muito tempo atrás, ao receber a identidade de Elizavieta Shedritcheva. Agora o Komintern me legava uma nova vida, e ela vinha com as mesmas obrigações de manutenção.

O gerente pegou os termos de compromisso, guardando-os. Astrakhanov já tinha checado nossos novos passaportes, passagens, e demais documentos. O representante do OMS catou os passaportes também, e rumou para a saída.

– Vou levar para registro – o inglês explicou, acenando com os livretos ao lado do rosto. – Um de vocês pode descer em quinze minutos para pegar.

– Registro? – estranhei, mal a porta fechou atrás do gerente. – Ele não acabou de dizer que vamos seguir direto para o Brasil? – comentei com Astrakhanov.

– As passagens são para depois do Natal – ele esclareceu, dando de ombros, e me passando o envelope. – Provavelmente deixaram uma margem de erro para o caso de o primeiro navio atrasar.

Bufei. Quanto antes a ação começasse, tanto antes ela poderia acabar, e meus outros planos seriam retomados. Atrasos me incomodavam.

– Podia ser pior – consolou Astrakhanov, ao notar minha irritação, sentando-se na cama e removendo o sobretudo. – Tivemos sorte de que eles já providenciaram nossos vistos. Poderíamos ter que ficar aqui por tempo indeterminado até consegui-los.

Veio-me à memória a procuração assinada por mim em nome de Anita Stuart, na reunião em que Prestes expusera o plano. Sim, a finalidade específica era requerer o visto para o Brasil. Tantos documentos, eu não tinha lido todos com atenção, será que vendera minha alma em algum deles? Esperava sinceramente que não.

Com uma careta, tirei meu sobretudo também, e me sentei ao lado do tenente. Ele abriu a boca para dizer mais alguma coisa, mas nesse momento entrou a criada para acender a lareira, e guardamos um silêncio precavido. A mocinha deu uma senhora olhada em Astrakhanov; em mim também, mas com menos atenção. O tenente se levantou e resmungou que ia buscar nossos documentos.

A criadinha olhou para mim novamente, louca para perguntar alguma coisa. Mas parece que eu havia aprendido a assumir o rosto de pedra soviético, no fim das contas, e ela acabou terminando seu trabalho e deixando o quarto sem criar coragem de me sondar.

Meu companheiro de viagem retornou em seguida, e nos aplicamos ao complexo trabalho de mudar de identidade. Astrakhanov adotou óculos redondos de lente falsa, que encontrou no envelope de documentos; como se ele não parecesse outra pessoa só por estar usando roupas civis. Eu cortei meus cabelos novamente; já estavam passando do ombro, e aparei-os segundo a moda, penteando-os também com capricho, o que nunca me dera o trabalho de fazer na União Soviética.

Após a transformação física, passamos ao descarte da bagagem, conforme ordenado pelo representante do Escritório de Ligações Internacionais. Tudo o que nos conectava de alguma forma à União Soviética foi destruído, incinerado na lareira do quarto. O material destinado à fogueira incluía qualquer pedaço de papel escrito em russo, e o livro de Pasha entrou nessa cota.

– Não! – protestei. – Não é meu...

– Tarde demais – Astrakhanov deu de ombros, fazendo menção de rasgar o livro na metade.

Aquilo já me doía só por ser um livro, apesar de eu saber que era necessário. Segurei a mão dele para freá-lo, e peguei o livro de volta, destacando a foto da folha de rosto, e devolvendo-o ao tenente, antes que ele se irritasse. Ele deu cabo do livro, e depois tentou tomar a foto de mim. Eu a escondi atrás das costas.

Dias VermelhosWhere stories live. Discover now