Capítulo 36 - A Longo Prazo

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Cada flor murcha que eu recebia nos envelopes, cada fragmento de Pushkin transcrito me fazia ter mais certeza de que eu nem era assim muito destruidora mesmo.

Ensinar o comunismo às crianças. Eu precisava estudar bastante para poder fazer isso direito depois. Depois. O trânsito entre a União Soviética e o Brasil seria até mais fácil então, tão fácil quanto permitia o transporte marítimo, claro. Talvez estabelecessem rotas diretas. E eu seria uma pessoa importante, e passaríamos um Natal com Anna Solinina e outro com meus pais.

Se, é claro, não proibissem o Natal no Brasil também.

– Entre – respondi, à batida na porta que interrompeu o fio dos meus pensamentos.

Astrakhanov adentrou o quarto, a expressão levemente irritada, segurando uma folhinha entre os dedos, com ar enojado.

– Será que vocês poderiam maneirar no mel? Está estragando a bolsa do carteiro – rosnou, sarcástico, entregando-me mais uma carta de Pavel.

Apenas girei os olhos para o teto, desdobrando o papel.

– Sério, eu vou parar de ler – disse o tenente.

– Mesmo? Nossa, assim não dá, acho que eu morreria de tristeza se você parasse de ler minha correspondência íntima, mon amour – ironizei.

Ele ficou vermelho, estreitando os olhos. O mon amour nunca falhava.

– Eliusha me paga – resmungou, deixando o quarto. Abri a carta, avidamente, um sorriso se desenhando em meus lábios já na data, só por ser a letra de Pasha.

Sim, estávamos muito mal.

Minhas expectativas não foram frustradas. Lá estava o excerto de um poema. E, mais uma vez, escolhido a dedo para me atingir.

Estrelas do Sul! Olhos negros!

Fogos de um outro céu!

Vos encontrarão os meus olhares

No céu frio de uma meia-noite pálida?


Constelação do Sul! Zênite do coração!

O coração, admirando vocês,

Com uma volúpia sulina, com sonhos juvenis

Bate, aflige-se, entra em ebulição.

Esse homem, o Pushkin... nossa, ele sabia como comover uma garota.

"Não, dessa vez não é o Pushkin", Pasha me corrigia, no trecho logo abaixo do poema. "Esse é de Piótr Vyazemskiy. Pushkin até respondeu esse poema com outro, mas este... me pareceu mais adequado. Esses velhos poetas podiam ser bem inúteis em termos de produção social, mas eles sabiam usar as palavras, não há que negar. Acredita que Maiakóvski propôs 'expulsá-los do barco da literatura contemporânea? ' Por isso eu te disse aquela vez que não gosto de Maiakóvski. Em parte, eu gosto, ele escreve bem, mas para quê tanta arrogância? Pushkin também é bom. Os dois são, cada um ao seu modo. Há lugar para todos na arte. Escritores, bem, artistas são tão presunçosos. Se algo não é do seu gosto, logo dizem que não é bom. "

Como não sorrir a essa lógica singela, mas precisa?

Mais uma batida na porta, e eu escondi a carta nas dobras da saia.

Dias VermelhosWhere stories live. Discover now