Capítulo 36 - A Longo Prazo

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– Quem vem? – questionei, curiosa.

– Não conheço os nomes – o tenente respondeu – e se conhecesse, não estaria autorizado a repassar essa informação – complementou, com um leve faiscar de seus olhos azuis.

– Tudo bem – eu respondi, me levantando, e pegando os materiais ao lado da minha cadeira, pois tinha vindo direto de uma aula. – Já vou indo. Melhor eu caprichar nas tarefas, para me liberarem para estudar para professora – e, despedindo-me com um sorriso, virei-me para abrir a porta.

– Isso mesmo. Eu acho ótimo que você tenha feito essa escolha – o comentário de Astrakhanov veio quando eu já estava com a mão na maçaneta. – Você não leva mesmo jeito para o trabalho de campo.

Girei nos calcanhares de imediato.

– Como? – sibilei.

– Desculpe, mas é verdade – o tenente encolheu os ombros. – Você daria uma mestra teórica excelente, mas uma guerrilheira sofrível.

– E posso saber por que você acha isso, hein? – protestei, um pouco mais alto do que pretendia, e esquecendo do tratamento formal de "Tenente" ou "professor" ou no mínimo "Camarada", que a ocasião exigia. – Eu sei atirar direito. Você inclusive disse que minha pontaria era boa – recordei.

– Você sabe atirar em homenzinhos de madeira – Astrakhanov respondeu, tranquilamente. Ele se debruçou levemente sobre a mesa, antes de completar – Acertar em um ser humano, ciente de que isso provavelmente vai custar a sua vida, é uma coisa muito diferente, Maria.

Eu não sei por que ele usou meu nome verdadeiro, mas para mim, naquele momento, soou como um desafio. Como se ele estivesse dizendo "Você viveu um personagem aqui, e representou bem o seu papel, mas, querida, eu e você sabemos que você não dá conta de metade do que a Elizavieta supostamente daria. Não na vida real". Eu me empertiguei.

– Então que bom que eu vou ter mais um ano ou dois para aprender, Tenente – respondi, assustando-me com o gelo que pingava da minha própria voz. – Porque o dia em que houver uma revolução comunista no meu país, eu vou estar nela. E quem sabe até me habilite para ajudar em outras, para praticar.

E saí, batendo a porta. Sim, bati. Dramático, mas ele merecia.

Meu sangue fervia. Como Astrakhanov ousava duvidar de mim? Ele tinha me visto, tinha me ajudado, tinha testemunhado o quanto eu me esforçava. Eu vencera os meus limites. Sabia de cor o modo de preparação da pólvora e mais três explosivos. Atirava em alvos estáticos ou em movimento, parada, correndo ou abaixada. Até rastejando. Sabia os modos mais eficientes de agitação e propaganda, e como reconhecer e evitar um provocador. Sabia criar códigos, quebrar códigos, destruir provas, e, sim, eu tinha aprendido bem a teoria também, mas isso não viria apenas a ajudar? Eu era, depois dessa estadia na ELI, uma das agentes mais preparadas que meu Partido possuía, mesmo que o meu Partido não fosse um exemplo de qualificação – ou justamente por isso. Então como ele ousava dizer que eu não era necessária... ou útil?

Passei dias bufando de raiva todas as vezes que eu me lembrava da cara de deboche de Astrakhanov – porque, honestamente, era o que me parecera – ao dizer que eu não fora talhada para a Revolução. Isso me fez me dedicar aos estudos com o dobro de vontade, o que foi muito bom, pois me ajudou a compensar os dias com a cabeça no mundo da lua por causa da presença de Pavel na cidade.

E, falando nele, foram suas cartas que me devolveram a calma, apagaram a raiva que eu estava de Astrakhanov, e acabaram por me fazer pensar que, no fim das contas, talvez o tenente estivesse com a razão.

Não, Pavel não me disse que "eu seria uma guerrilheira sofrível", até porque ele nada sabia sobre a essência do meu treinamento. Ele só me fez sentir vontade de ser uma esposa adorável, e cogitar que, se os dois papéis entrassem em conflito, eu não me arrependeria em escolher o segundo. Afinal, nada me impediria de voltar ao Brasil após a tomada do poder, para ajudar na construção do comunismo, não é mesmo? Eu não necessariamente precisava participar da etapa da destruição das estruturas capitalistas.

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