Capítulo 30 - O Couro Cabeludo

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– Sorte mesmo.

– Acidentes de trabalho são coisas sinistras – Pavel comentou. – Mas enfim, você vai me assistir? Vamos competir apenas no último dia e chegaremos na véspera. Não é muito tempo, mas pelo menos podemos nos v...

Um grito lancinante me fez soltar o tubo do telefone, que caiu e ficou dependurado pelo fio, balançando perto do chão. A secretária tinha pulado de pé, alarmada pelo mesmo barulho. Nos entreolhamos e saímos correndo em direção ao som. Outras pessoas vinham saindo de outras alas da fábrica, engrossando a multidão que acorria à ala dos teares. Mais gritos sucederam ao primeiro, e também alguns soluços e pragas e exclamações de "Meu Deus" vindas da primeira fila.

Muitas das mulheres russas eram mais altas que eu, então tive que me espremer e acotovelar e saltar para finalmente ter uma visão do que ocorria no centro da ação. Desejei que não o tivesse feito. Havia muito sangue, uma mulher desacordada, e uma trança comprida num lugar em que não devia estar: fora da cabeça de sua dona.

Desmaiei.

Liza... Liza!..

Abri os olhos. Sveta dava tapinhas no meu rosto, e Lucia estava parada no outro lado, com um copo d'água nas mãos.

– Está tudo bem? – perguntou a moça de cabelos claros. Eu acenei que sim, embora fechasse os olhos logo em seguida, comprimindo-os com os dedos ao sentir a cabeça girar.

Sveta se endireitou, e eu pude ver várias das nossas outras colegas de departamento me cercando, inclusive com uma das senhoras mais velhas bem aos meus pés. A propósito, ao que parecia, eu tinha sido colocada deitada sobre uma cama improvisada de cadeiras.

– Eu apaguei? – perguntei, de besta, pois a resposta era evidente. Sveta confirmou com a cabeça, e Lucia acrescentou.

– Você e mais umas cinco. A cena foi realmente chocante – arrepiou-se.

O quadro do acidente voltou ao meu cérebro, e meu estômago se revoltou. O rosto pálido da moça caída no chão, o vestido manchado, o sangue no chão, o sangue nas máquinas, o sangue, o sangue... Senti uma vertigem, e respirei fundo, para me impedir de desmaiar novamente.

– E... o que fizeram com ela? – sussurrei, transparecendo na minha careta tudo o que se passava em meu sistema digestivo. – Ela está... – minha voz morreu, sem coragem de completar a suposição.

– Não – tranquilizou Lucia. – Pelo menos a levaram viva daqui – completou. – O socorro chegou a tempo, vieram bem rápido. Uma das enfermeiras até queria ficar para reanimar você e as outras moças que passaram mal, mas a equipe precisava dela, então ela apenas deixou instruções – contou, estendendo-me o copo d'água, que eu peguei e do qual fui bebericando.

– Não se preocupe, filha – disse uma das mulheres que me cercavam, já fazendo menção de voltar para sua máquina de costura. – Não é a primeira vez que um acidente assim acontece. Cabelo é a primeira vez que eu vejo, mas dedo perdido, mão perdida, perna esmagada... Antes da revolução era bem pior – concluiu.

– Eu já vi acontecer com o cabelo, na fábrica em que eu trabalhava antes – comentou outra mulher. – Por isso que o meu é curtinho. Não me arrisco.

– Também, que tonta – uma terceira mulher criticou. – Custava amarrar um lenço em volta? Vira pra cá, vira pra lá, a trança balançando, aquele monte de fios, os fusos se movendo... É pedir para dar errado, mais cedo ou mais tarde. As pessoas têm que aprender a serem cuidadosas.

Apesar de continuar enjoada, eu senti que já conseguia me levantar, e fui pelo menos me sentar de volta em frente à minha máquina de costura, para não tumultuar o ambiente, que tentava retornar à normalidade. Vendo que eu parecia bem, Sveta e Lucia também voltaram a seus lugares.

– O que vai acontecer com ela? – eu pensei em voz alta.

– Se sobreviver – Lúcia respondeu, causando-me um sobressalto – vai ficar afastada. Receber uma pensão. Dependendo da gravidade dos efeitos, se a impedirem de trabalhar novamente, vão aposentá-la por invalidez.

– Tão nova e já inválida – lamentei.

– É realmente um grande azar – concordou Lucia. – Mas são os ossos do ofício. Se há indústrias, pode haver acidentes, todas nós estamos sujeitas.

As conversas sobre o assunto – penalizadas, críticas ou de abutre – foram morrendo pouco a pouco, conforme a novidade deixava de ser novidade. Para mim, porém, nada tinha passado. A cena do acidente voltava a piscar diante dos meus olhos a cada comentário entreouvido, enriquecida pelos detalhes que minha imaginação fértil adicionava. Ou coisas que eu nem sabia que tinha notado.

Ela estava de vestido azul, com florezinhas brancas. As pernas, espalhadas num ângulo estranho. A mão pousava sobre o ventre, que subia e descia de modo convulsivo. Como se chamava? Provavelmente Tatiana ou Natália. Ou Elena. Era bem jovem, uns dezessete anos, talvez. Será que cicatrizaria? Que o cabelo voltaria a crescer?

Reparei que minhas reflexões estavam transparecendo no meu rosto quando Sveta se curvou e tocou meu braço:

– Liza, tem certeza que está bem? Quer que a gente peça para te liberarem para ir para casa?

– Ficamos preocupadas com você – Lucia complementou. – Não sabíamos que é do tipo que desmaia quando vê sangue.

– Eu não sou! – protestei. – Foi um lapso. E estou bem, já disse, me deixem em paz – acabei soando mais rude do que pretendia, e as duas se recolheram aos seus próprios botões para pregar.

O problema é que eu era, sim, do tipo que desmaia quando vê sangue. Não com qualquer cortezinho ou ferimento, claro, mas podia acontecer. Sabia disso desde a tenra infância, quando um vizinho tinha rasgado a perna de cima abaixo ao cair sobre uma cerca de arame farpado.

"E você ainda quer participar de uma revolução armada?", aquela voz, uma velha inimiga zombeteira que me visitava às vezes, soou em minha cabeça novamente. E novamente eu lutei para suprimi-la, trincando os dentes, enquanto pregava meus botões pelo resto da tarde. Ela ia sussurrando coisas no meu ouvido, coisas cotidianas num contexto de guerrilha, ou que eu tinha escutado nas aulas sobre a revolução russa, e que me causavam pavor. Campos repletos de mortos. Um prédio com gente confinada, morrendo de pneumonia pelos cantos. Fome, pessoas obrigadas a consumir carne humana, carne de cadáveres, para sobreviver.

"Você não foi talhada para uma revolução, professorinha", a voz zombou de mim, mais uma vez. "No fundo, você é uma pequeno-burguesa que só sabe fazer versos e cantar a beleza de algo que nunca terá coragem de encarar na vida real".

– NÃO! – eu falei, em voz alta. As pessoas à minha volta me olharam estranhamente. Sveta chegou a abrir a boca para reiterar a sugestão de que eu fosse embora, mas eu baixei os olhos para a camisa que costurava, ignorando-a.

"Não", murmurei, meramente mexendo os lábios, porque falar, mesmo que sem emitir som, me parecia mais significativo naquele momento do que apenas pensar. Como se mostrasse qual dos meus lados era mais forte, qual deles venceria essa batalha. Qual eu queria que vencesse.

"Você sabe que vai dar para trás antes do final".

"Não".

"Ah não? Pois vamos apenas apostar".

E, a cada novo argumento, a voz derrotista da minha consciência, combinando palavras e memórias para me enfraquecer, lançava flashes da moça estendida no chão, do meu vizinho de perna rasgada, de Astrakhanov baleado, de uma pessoa que eu vi no hospital uma vez, com o ventre aberto por uma briga de peixeiras em um bar.

Deveria eu ser considerada louca por aceitar uma aposta contra mim mesma?

Se esse for o caso, já podem me internar.

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