Capítulo 29 - Sobre Códigos e Café

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– Traduzindo até tarde de novo, Liza? – perguntou Jaime, pulando para o banco ao meu lado, e me obrigando a abrir os olhos, alarmada.

– Uhm? Ahn? Ah, sim – respondi, atordoada. – Às vezes me arrependo de ter me oferecido – resmunguei.

– Quem mandou querer se exibir. Eu falo francês e inglês e russo – ele me arremedou. – Agora aguenta.

Fechei a cara para ele.

– Eu não estava me exibindo. Vi a necessidade do grupo e procurei atendê-la. Esse é o espírito do socialismo, Camarada Suarez, e se não o compreende, melhor repensar seus princípios.

– Ai, calma, não precisa ficar brava – ele disse. Pegou no tecido branco do bolso da sua camisa e levantou-o um pouco – Olha, paz. Eu só estava brincando.

Apesar da vontade de rir do gesto, eu ia manter a postura severa mais um pouco e bronqueá-lo sobre brincadeira ter hora, mas Astrakhanov entrou no ônibus, energizado como se não fossem seis da manhã e ele não tivesse duas turmas de estudantes ineptos para ensinar a atirar de fuzil – nós e os tchecos.

– Muito bom dia, Camaradas! Todos prontos para esburacar nossos homenzinhos de madeira? Hoje vocês aprenderão a atirar em movimento... Mas, como dizem, pustói meshók stoiát ne budet, então primeiro vamos tomar café-da-manhã.

Enquanto alguém resmungava "Pelo menos isso", eu me admirava que eles também tivessem exatamente o provérbio "Saco vazio não para em pé". E não era a primeira vez que eu via uma coincidência do tipo. Parece que, em muitas coisas, cada uma por seus meios, as nações tinham chegado às mesmas conclusões.

Refeita pela refeição matinal, eu já estava desperta quando voltamos ao ônibus, para seguir viagem. Pisei no primeiro degrau, e de repente uma voz chamou minha atenção.

– Liza? É você mesmo?

Olhei para a esquerda, de onde viera o chamado, e meus olhos se arregalaram ao dar de cara com Ivan. Estava distante alguns metros, e carregava uma sacolinha, provavelmente contendo o almoço ou um lanche. Devia estar rumando para o trabalho. Sem responder nada, entrei rapidamente no ônibus, e corri para o meu lugar, abaixando-me no assento, para que ele não pudesse me ver pela janela. Ao mesmo tempo, ouvi um tropel de passos do lado de fora, e a voz séria de Astrakhanov na porta do ônibus:

– A entrada não é permitida, camarada. Este é um veículo oficial.

– Desculpe, é que acho que vi uma amiga minha entrando aqui.

– E quem seria?

– Liza... Elizavieta. Esqueci o sobrenome.

– Não há ninguém aqui com esse nome, camarada.

De certa forma, era verdade.

– Mas eu vi...

– É cedo, provavelmente o senhor confundiu.

Houve silêncio. Ivan não estava convencido, mas o tamanho, a farda e o ar um tanto ameaçador de Astrakhanov dissuadiram-no de teimar.

– Talvez.

– Certamente. Tenha um bom dia.

E Astrakhanov entrou no ônibus, cerrando a porta e mandando o motorista seguir. Eu permaneci abaixada no meu lugar, com Jaime ao lado, me olhando com ar de quem estava formulando questionamentos sobre minha saúde mental. Ouvi rangidos de botas se aproximando, enquanto o veículo se distanciava do meu perseguidor, e logo Astrakhanov assomou no corredor.

Eu me ergui lentamente, voltando a sentar na poltrona, sob o olhar perscrutador do tenente.

– O namorado de Leningrado sabe sobre esse aqui?

Dias VermelhosWhere stories live. Discover now