Capítulo 29 - Sobre Códigos e Café

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– Uhum. Esse mês acontece o Congresso anual do Partido, não é? Novos líderes seriam eleitos de qualquer jeito.

Carmen deu de ombros, tomando um gole do chá, que a essa altura já devia ter esfriado. Eu, por outro lado, não conseguia voltar para o meu trabalho, e continuava olhando para aquela mulher enigmática.

Se ela não integrava o Partido – e era verdade que eu nunca a tinha visto antes – como sabia tanto sobre as nossas disposições internas? Será que era uma espiã? Eles faziam uma checagem de antecedentes tão rígida antes de admitir alguém na Escola. Seria impossível que tivéssemos um infiltrado nas nossas fileiras. Ou não? De onde raios surgira essa mulher, assim, no meio do ano, sem pertencer a nenhuma turma específica, fazendo algumas aulas aqui e ali, sem residir na escola e apenas vagamente vinculada ao nosso setor? Para quem permitiriam tantas exceções? Quem era ela, afinal?

Céus, eu estava ficando paranoica.

Uma imagem voltou a minha mente, da primeira vez que eu vira Carmen, na reunião do Setor L. Silo a cumprimentara com familiaridade, e se assentara perto dela, permanecendo ali até o fim da sessão. Parece que alguém a conhecia, no fim das contas.

– De onde você conhece o Mendoza? – minha boca perguntou, antes que eu pudesse fechá-la. Carmen ergueu os olhos castanhos e franziu as sobrancelhas.

– Quem? – questionou, levemente impaciente.

– O Silo – tornei. – Silo Meireles.

– Oh... É um amigo da família – retrucou, simplesmente, desviando o olhar. Eu fiz menção de perguntar mais alguma coisa, mas desisti. Tentaria espremer a outra fonte mais tarde, provavelmente com maior eficiência.

Mergulhei de fato no trabalho, interrompendo a leitura e a escrita só para discutir algumas questões de termos específicos, e beliscar os biscoitos de um prato sobre a mesa. Já estávamos atrasadas para a entrega daquele livro, o que nos obrigava a perder os dias lindos que fazia lá fora, a fim de que pudéssemos concluir a tradução a tempo de entregá-la ao editor para a impressão já agendada dos primeiros exemplares. Nossos colegas esperavam esses exemplares avidamente, e não podíamos deixá-los na mão. Estávamos acabando, mas ah!, como eu queria ter mais tempo. As tarefas se acumulavam e eu me sentia soterrada por elas, como se caminhasse de dever em dever em dever... Nesse ritmo, as coisas que poderiam ser prazerosas se tornavam um tédio.

Curiosamente, esbarrei numa passagem em que Marx falava justo sobre isso:

O tempo é o campo do desenvolvimento humano. O homem que não dispõe de nenhum tempo livre, cuja vida, afora as interrupções puramente físicas do sono, das refeições, etc., está toda ela absorvida pelo seu trabalho para o capitalista, é menos que uma besta de carga. É uma simples máquina, fisicamente destroçada e espiritualmente animalizada, para produzir riqueza alheia.

Tirando a parte de produzir riqueza alheia, eu não me sentia muito longe de uma besta de carga. Ou antes, uma besta-intelectual, besta-teórica, besta de produção textual. Só mais uma tradução, só mais um relatório, só mais um artigo científico ou opinativo. Nunca pensei que diria isso, mas eu estava cansada de livros.

Por uma associação mental, lembrei da pequena distopia escondida embaixo do meu travesseiro, que eu ainda nem tivera tempo de abrir. Nós. E de quem a tinha emprestado para mim. Tive saudade de junho. Das férias, que não eram férias – pois, afinal, eu trabalhava – mas que, ao mesmo tempo, eram sim. Apesar de todas as pedras carregadas e paredes pintadas, sobrava tempo para descanso e diversão, pontes e violinos.

Mas pontes e violinos não faziam revolução. Uma base teórica impecável e uma boa pontaria faziam, e era esse raciocínio que motivava o meu eu morto-vivo a subir no ônibus às seis da manhã do dia seguinte, para rumarmos ao campo de tiro.

Dias VermelhosWhere stories live. Discover now